1 Portugal precisa de mudanças, não há dúvida. Mudanças na economia, no funcionamento da justiça, no combate à corrupção e em muitas outras áreas. Porém, a maior mudança que se pode operar em Portugal, sem a qual aquelas não terão lugar, é a do sistema político. Neste domingo e no próximo os portugueses são convidados a votar segundo regras definidas há mais de quarenta anos. Em 1981 havia 1,5 milhões de analfabetos em Portugal e quarenta anos depois este número desceu para cerca de 293 mil (dados PORDATA). Este número, sendo ainda muito grande, mostra a enorme evolução na literacia dos portugueses. Tal evolução deveria suscitar uma reflexão sobre se, após quase cinco décadas do 25 de Abril, se justifica continuar a tratar os eleitores portugueses como incapazes de fazerem escolhas que não sejam num partido político. Importa lembrar que Portugal é dos raros países europeus onde não é possível votar em candidatos, mas somente em partidos. Será que Paulo Núncio (AD/CDS/Lisboa) seria eleito sabendo-se o que pensa sobre a interrupção voluntária da gravidez? Ou Eduardo Oliveira e Sousa (AD/Santarém) com a sua esdrúxula posição sobre as alterações climáticas? Nunca o saberemos dado não ser possível um voto em candidatos, contrariamente ao que acontece na esmagadora maioria dos países europeus. Outro problema do nosso sistema eleitoral é que objetivamente trata os eleitores portugueses ou como cidadãos de primeira ou como cidadãos de segunda, em função do seu local de recenseamento (já lá vamos). Um sistema eleitoral desadequado é apenas um dos problemas do nosso sistema político. O outro é o funcionamento e a formação de quadros dos partidos. O financiamento público dos partidos vai sobretudo para funcionamento e campanhas eleitorais e não para formação de quadros no contexto de institutos ou fundações partidárias. E quando o financiamento vai para onde deve ir (grupos parlamentares) acaba desviado para outros fins partidários. Isto explica a fraqueza relativa dos quadros dos partidos, e também da atividade parlamentar, face às suas responsabilidades políticas. O funcionamento do sistema político depende em parte das regras legais do sistema (lei eleitoral à AR, lei de financiamento dos partidos políticos, etc.), mas também do comportamento dos atores políticos face aos seus adversários e aqui há diferenças a assinalar. De qualquer modo, é neste contexto que precisamos e devemos votar. Mas será o voto útil?
2 O voto ser útil ou não, depende do significado da palavra “útil”, do nosso sistema eleitoral e do tipo de votante. Para simplificar, consideremos que o votante quer contribuir para eleger alguém e não faz um voto prospetivo, a pensar no futuro. Na prática o nosso sistema eleitoral trata certos eleitores como de primeira classe e outros de segunda classe. Os primeiros têm um largo menu de escolha partidária, os segundos não. É o caso dos eleitores de Portalegre onde só é possível eleger dois deputados. Isso significa que, no cenário mais adverso, são necessários pouco mais de 33% dos votos para um partido ter a certeza que elege um deputado. Um eleitor que queira que o seu voto eleja alguém (seja “útil”) deve votar num dos dois maiores partidos. Votar num pequeno, ou médio partido, tem eficácia zero e é um “desperdício”. Quanto menos os mandatos (M) por círculo, maior o incentivo ao voto útil. É o caso dos círculos da Europa ou Fora da Europa (2M cada) ou de Beja, Bragança, Évora e Guarda (3M cada). Em contrapartida no círculo de Lisboa, que elege 48 deputados, temos cidadãos de primeira. No cenário mais complicado, basta ter 2,04% (=1/49) dos votos para um partido ter a garantia que consegue eleger um deputado. Aqui um votante que tenha preferências por um partido pequeno pode, com o seu voto, contribuir para eleger um deputado. É nos círculos de Lisboa (48M) e do Porto (40M) que o menu da escolha eleitoral é, na prática, mais vasto e qualquer voto sincero é mais instrumentalmente útil.
3 O voto útil para um eleitor de direita, depende, antes do mais, do círculo eleitoral em que se vota. Em círculos pequenos, pelas razões expostas o voto útil só pode ser na AD. Em círculos maiores, para quem se revê nos legados de Cavaco Silva, Durão Barroso e Passos Coelho, e que acha que Luís Montenegro (LM) é um bom candidato a primeiro-ministro o voto só pode ser na AD. Para quem considera que é preciso uma transformação na direita, tornando-a mais moderna e mais liberal ou quem considera que LM não é o candidato que a direita necessita para se afirmar, o voto útil é na Iniciativa Liberal. Isto porque há uma quase certeza que uma eventual derrota da AD levará à demissão de LM. O voto no Chega, em termos de governação é inútil. Expressa o protesto e a adesão à antiga tríade de Deus, pátria e autoridade.
4 O voto útil de um eleitor de esquerda depende também do círculo eleitoral. Nos círculos médios e grandes, para quem considera que a geringonça liderada pelo PS, e cimentada por Pedro Nuno Santos, pode ser revisitada e que o PS de maioria absoluta de António Costa fez um bom trabalho, o voto certo é no PS. Em contrapartida quem associa esquerda com anti-capitalismo, recusa o projeto europeu e a NATO, tem dificuldade em condenar a agressão militar russa e é conservador em temáticas ditas fracturantes (e.g. LGBTQI+) deve votar PCP. (De notar que este partido poderia ter escolhido um melhor líder para campanhas eleitorais – Bernardino Soares, João Oliveira ou António Filipe – e eventualmente pagará um preço por isso). Quem partilha deste posicionamento ideológico, mas é mais defensor das temáticas ditas “fracturantes” e é critico da invasão da Ucrânia pela Rússia, deve votar BE. Em comum, BE e PCP não se importam de fazer coligações negativas com partidos de direita para deitar abaixo governos do PS ou inviabilizar orçamentos e não acham muito relevante a redução da dívida. Finalmente, o voto útil de quem considera que é necessária uma transformação no espaço político da velha esquerda, preza mais a estabilidade política, condena inequivocamente a invasão da Ucrânia e tem preferências mais fortemente europeístas e ecologistas, é no Livre. Relembre-se que logo na votação na generalidade do OE2022 BE e PCP, ao lado de todos os partidos de direita, contribuíram para chumbar o orçamento socialista, enquanto Livre e PAN se abstiveram. Ou seja, à esquerda há diferentes concepções da importância do diálogo e da estabilidade política.
Qualquer que seja o resultado das eleições de 10 de Março, duas conclusões podem já antecipar-se. A situação política do país ficará muito mais complexa. Não haverá a mudança institucional que o país necessita.