1998 – Basileia. No torneio da sua cidade natal, o terceiro da sua ainda curta carreira, mostrava-se ao mundo um jovem suíço ao defrontar, na ronda inaugural, um dos grandes monstros da história do ténis mundial, André Agassi. Apesar da derrota, totalmente esperada, Agassi ficara com uma belíssima impressão do então número um de juniores, prevendo que se viria a tornar num dos jogadores mais duros do circuito para os anos vindouros. Uma previsão que só pecou por eufemismo. Uns anos mais tarde, em 2001, com o circuito dominado por um irreverente jovem australiano, Lleyton Hewitt, Federer chamava a si os olhos de todos os adeptos da modalidade ao derrotar o então indiscutível rei de Wimbledon, Pete Sampras, no mítico court central do All England Club, como que num passar de testemunho de um rei para outro. Ali, passara de promessa a certeza e percebeu-se que, mais tarde ou mais cedo, o mundo do ténis seria seu. O seu estilo de bad-boy era gradualmente deixado para trás e, após o falecimento do seu treinador Peter Carter, deu-se o verdadeiro shift na mentalidade de Federer, dando início à super estrela mundial que hoje conhecemos.
Numa altura em que o estilo de baseliner parecia ter vindo para ficar, protagonizado por ases como Roddick, Ferrero, Nalbandian ou o já referido Hewitt, Federer veio alterar por completo esse paradigma combinando, em si, todas as componentes do jogo de ténis. Com um serviço que parecia infalível e impossível de ler, uma facilidade brutal nas letais direitas paralelas, cruzadas ou inside-out, um venenoso slice que lhe permitia montar as condições para finalizar o ponto uma ou duas bolas depois, bem como lidar com as fortes groundstrokes dos adversários, e uma naturalidade e precisão avassaladoras na rede, Federer parecia pura e simplesmente não apresentar defeitos. Para além disso, vê-lo jogar é o equivalente desportivo a ver um poeta declamar os seus poemas ou um artista a pintar um quadro. A sua fluidez de movimento nunca teve paralelo a nível mundial e a sua capacidade em percorrer um court de ténis como se de um palco de ballet se tratasse para, no segundo seguinte, desferir winners a velocidades vertiginosas que se perdiam no meio de um piscar de olhos faziam de Federer o mais espetacular jogador do circuito que, ainda por cima, aliava tudo isto a uma mentalidade vencedora digna dos super campeões. Como foi brilhantemente descrito por David Foster Wallace no seu espetacular artigo para o New York Times, “Roger Federer as a religious experience”, ver Federer jogar era como ouvir Mozart e Metallica ao mesmo tempo.
Alcançou, em 2003, a sua primeira conquista em Grand Slams com a vitória no torneio de Wimbledon montando as bases para um domínio do circuito entre 2004 e 2007 que nunca mais viu igual com 11 vitórias em majors em 16 possíveis. Pelo meio, vulgarizava jogadores como os já referidos Hewitt, Roddick ou Nallbadian fazendo-os parecer jogadores de média gama quando, na realidade, constituíam uma geração de talento brutal, na minha opinião amplamente superior à tão aclamada Next Gen actual, excepção feita à recente coqueluche do ténis mundial, Carlos Alcaraz. Em 2008, começa a dividir o protagonismo mundial com Rafa Nadal, até então apenas dominante em terra-batida, ao que se veio a juntar, mais tarde, outro super campeão, Novak Djokovic. Conseguiu, em 2009, o seu tão ambicionado Grand Slam de carreira ao derrotar Soderling numa final de sentido único em Roland Garros tendo, dois meses depois, superado o então recorde de 14 slams de Pete Sampras numa épica final diante de Roddick em Wimbledon. Com o crescimento tanto de Nadal como de Djokovic, muito influenciados pelo jogo do suíço e pela incessante busca de como o derrotar, Federer veio a perder domínio, consequência natural da idade e do facto de ambos serem cerca de 5 anos mais novos que o suíço, algo que sempre passou despercebido tal a capacidade de Federer em manter a competitividade nos encontros diante dos rivias. Em 2012 conquistou aquele que muitos viam como o seu último Grand Slam com uma vitória diante de Murray, em Wimbledon também e, em 2016, após um arranque marcado por lesões nas costas e joelhos, anunciava um hiato do ténis competitivo de modo a conseguir uma recuperação que lhe permitisse voltar a ser competitivo. Muitos, eu incluído, viam ali o fim da sublime carreira do suíço que guardara, para si, o lugar de melhor de sempre na modalidade à qual tanto deu e, por sua causa, tanto crescera.
Estava(m), felizmente, enganado(s). Guardo o início de temporada de 2017 de Roger Federer como o melhor ténis que vi alguém alguma vez praticar. Após uma Hopman Cup onde já havia deixado belíssimas indicações, chegava a hora de todas as verdades num dos meus torneios favoritos, o Australian Open. O calendário era promissor, com embates precoces diante de conceituados tenistas como Berdych ou Nishikori. Nos quartos, beneficiara da surpreendente derrota do então nº1 mundial, Andy Murray, diante de Mischa Zverev, avançando em modo cruzeiro para uma super meia final diante do compatriota Stan Wawrinka. Na final, o sonho de qualquer adepto da modalidade. O quadro havia colocado o 17º e 9º cabeças de série em metades opostas, significando que um eventual encontro entre ambos apenas teria lugar na final. Não seria isto factor relevante caso o 17º e 9º cabeças de série não fossem, por incrível que parecesse, respectivamente, Federer e Nadal. 6 meses depois de um Verão onde se chegou a temer pela carreira dos dois maiores tenistas de sempre, ali estavam eles, a disputar mais uma final de Grand Slam. E que final. Um 5º set como que a dar uma última oportunidade sagrada aos adeptos da modalidade de voltarem uns 10 anos atrás e viverem, mais uma vez, o nível absolutamente divino e incomparável de ambos. Com a sua neo-backhand simplesmente estratosférica e um nunca antes visto à vontade nas trocas de fundo de court diante do espanhol, Federer culminou uma quinzena de sonho com um winner em approach que até Nadal quis ver verificado pelo hawk-eye. E aquele winner de direita a 40-40 no 8º jogo do 5º set será das últimas coisas que alguma vez apagarei da minha memória. Após consolidar este arranque de sonho no Australian Open com mais 3 semanas abismais em Indian Wells e Miami, onde voltou a derrotar Nadal por duas vezes fazendo bom uso da sua renovada esquerda, Federer demonstrava, ali, algo que nunca se pensou possível: que o seu jogo ainda tinha algo por melhorar. Em 2016, muitos temeram pela carreira do suíço. Se parasse ali, já teria para si reservado o lugar de melhor de sempre. Mas, não só não parou, como melhorou significativamente o seu jogo e voltou às vitórias em Grand Slams. A prova viva de que, por muito bons que sejamos na nossa área profissional, há sempre espaço para melhorar.
Falar de Federer é falar de Nadal. E tantos, mas tantos momentos singularmente memoráveis nos proporcionou este par. Além da supramencionada final do Australian Open em 2017, recordo aquela final de Roma em 2006 em que Federer dispôs de dois match-points, sendo traído pela sua normalmente letal direita, permitindo a recuperação de Nadal ou a mítica final de Wimbledon em 2007 em que Federer alcançou a sua 5ª vitória consecutiva no torneiro inglês mas em que Nadal ameaçava, pela primeira vez e de forma clara, o domínio do suíço na catedral da relva. Nenhum jogo, no entanto, será tão recordado para a posterioridade como a indescritível final de Wimbledon em 2008, por muitos considerada como o melhor jogo de ténis de sempre, superando até a lendária final Borg vs McEnroe de 1980.. Ali, frente a frente, os dois maiores nomes da modalidade, no auge das suas capacidades, defrontavam-se num contexto único protagonizando momentos absolutamente memoráveis. Mostravam, ali, a diferença entre os grandes campeões da história e o patamar sobre-humano que ambos, mais tarde ou mais cedo, alcançariam nas suas carreiras. Há, no entanto, um momento que é particularmente descritivo do que menciono aqui. Empatados no tie-break do 4º set, com Nadal a liderar por 2 sets a 1, o espanhol produz aquele que fora, até então, possivelmente o melhor shot de todo o torneio num brilhante passing de direita, deixando Federer preso ao relvado e montando match-point a seu favor. Uns segundos depois, o próprio Nadal abre o ângulo de jogo com uma brutal direita, que em condições normais lhe garantiria o título, para Federer, num momento simplesmente inenarrável, desferir um passing-shot de esquerda paralela produzindo, ali, o melhor ponto do torneio. Os super campeões são assim. Quando a pressão aperta como nunca, encontram forma de ir buscar o seu melhor nível de jogo e virar o ímpeto a seu favor. E não há melhor exemplo disto que Federer e Nadal. Nadal viria a vencer o encontro mostrando a todo o mundo que ele próprio era um dos jogadores mais completos da história e que o seu domínio estava longe de ser limitado ao pó de tijolo.
Como qualquer campeão, também de duras derrotas se fez a carreira de Federer. Além das duas já mencionadas diante de Nadal, outras duas merecem ser brevemente recordadas. Diante de Del Potro no US Open em 2009 onde tinha a possibilidade de estender a sua streak em Flushing Meadows para seis títulos consecutivos, mas, após liderar por 2-1 em sets, permite a reviravolta do gigante Argentino (na meia-final havia produzido um dos melhores pontos da sua carreira com um brilhante tweener diante de Djokovic para lhe dar 3 match-points). Do mesmo modo, em 2011 nas meias finais do mesmo torneio e onde tive o enorme privilégio de assistir ao vivo, quando dispõe de 2 match-points no seu serviço diante de Djokovic e permite a vitória do sérvio num épico encontro a 5 sets, reviravolta iniciada numa estonteante resposta de direita a um serviço do suíço por parte de Nole. Mas, certamente, nenhuma terá sido tão dura como a fatídica final de Wimbledon em 2019 onde, com dois match-points a seu favor e no seu serviço, Federer não consegue fechar a conquista do seu 9º troféu em Wimbledon, logo diante de um super Djokovic. O primeiro match-point desperdiçado é particularmente curioso. Optou o suíço por uma abordagem semelhante à que lhe havia dado o título diante de Murray em 2012, abrindo o campo com o serviço e aguardar pela resposta para cruzar jogo e subir à rede para, ou fechar em volley ou forçar o erro. Mas nem o serviço nem o approach foram tão assertivos como em 2012, nem Djokovic é Murray e o sérvio acabou por desferir um belíssimo passing, virando para si o ímpeto do jogo. Lá está, só possível aos super campeões.
Em Fevereiro de 2020, após um Australian Open onde, condicionado por lesões, acaba por alcançar as meias finais, Federer anuncia uma operação ao joelho direito e consequente desistência de todos os torneios até Roland Garros. Em Junho, já com a pandemia a condicionar todo o calendário ATP, revela que ficará de fora do circuito durante toda a restante temporada, ambicionando um regresso em 2021 com um olho especial para os Jogos Olímpicos. O regresso não foi tão fulgurante, nem perto, como em 2017, mas a magia do seu ténis continuava a fazer delícias aos adeptos da modalidade. Que o diga Istomin que, na primeira ronda de Roland Garros 2021, assistiu do melhor lugar do mundo a uma verdadeira masterclass do suíço que, mesmo lesionado, demonstrava que a sua técnica sublime não se evaporara com a idade. Acabaria por desistir após uma muito intensa 3ª ronda diante de Koepfer, num atestado ao seu amor pelo jogo. Afinal, e como disse Andy Murray na altura, independentemente do resultado, ver Federer, com quase 40 anos, após ser operado ao joelho, a mostrar uma competitividade brutal pela madrugada dentro perante um estádio vazio (devido à pandemia), é a maior prova de paixão pela modalidade que o suíço poderia dar. Viria a realizar o seu último encontro no circuito profissional ATP, diante de Hubert Hurkacz no seu Court Central de Wimbledon, chegando aos quartos de final apesar da insistência das lesões que marcaram o seu segundo regresso.
Infelizmente tudo tem um fim e, recentemente, Federer anunciou a sua retirada do ténis profissional, marcando a despedida para a edição 2022 da Laver Cup, que o próprio ajudara a fundar em 2017, num encontro de pares disputado ao lado do seu rival de sempre, Rafa Nadal. No final, rodeados de lendas antigas, presentes e futuras da modalidade, ambos choravam compulsivamente de mãos dadas, criando uma das imagens mais poderosas da história do desporto, ao nível da inigualável rivalidade que ambos protagonizaram durante anos. Não podia haver maior atestado àquilo que Federer significa. Não se sabe ao certo quais dos seus recordes serão mantidos e por quanto tempo. Mas para mim, independentemente daquilo que outros tenistas forem alcançando nas suas carreiras, nenhum terá o impacto que Federer teve para a modalidade. Pela forma como veio revolucionar a maneira como se aborda um jogo de ténis, ou pelo seu arsenal técnico praticamente insuperável, ainda para mais em 2017 quando, finalmente, elevou de forma clara o nível da sua esquerda batida. Pela sua fluidez de movimento que nos faz questionar se estamos a ver um desportista a disparar bolas a mais de 200km/h ou a assistir a um espetáculo de dança, ou pelo profundo respeito que sempre demonstrou pelos colegas, tanto dentro como fora do court. Pela relação mágica que criou com todos os fãs da modalidade ou pura simplesmente pela sua peRFeição em tudo aquilo que está relacionado com o ténis ou postura de um atleta, Federer será sempre, aos meus olhos, o melhor desportista que alguma vez vi. Nenhum outro combinou tão bem o carisma de uma superestrela com uma postura de verdadeiro gentleman em todo o espectro, ou a espectacularidade técnica que enche vídeos no Youtube com a mentalidade competitiva e excelência profissional de um super campeão e atleta. Na altura da sua morte física, Maradona fora apelidado por muitos como o “mais humano dos Deuses”. Já Federer será aquele que, dentro dos humanos, esteve mais próximo de alcançar uma perfeição divina. Obrigado, Roger Federer