Já não será tão curto como a Guerra dos Seis Dias de 1967 na qual Israel anexou os Golan Heights da Síria, toda a Península do Sinai (incluindo Gaza) ao Egipto e a Cisjordânia (vulgo West Bank) à Jordânia; é cada vez mais seguro afirmar que superará os 20 dias da Guerra do Yom Kippur de 1973, na qual Israel deu continuidade à anexação no West Bank e Golan Heights mas devolveu a Península do Sinai (excepto Gaza) ao Egipto, em troca pelo reconhecimento do Estado de Israel por parte do Egipto, que viria a acontecer com o acordo de paz de 1979. Serve este brevíssimo contexto para constatar que o conflito iniciado com os atentados terroristas por parte do Hamas a 7 de Outubro de 2023, exactos 50 depois da Guerra do Yom Kippur de 1973, caminha para ser um dos mais importantes na história de um outro macro conflito iniciado, pasme-se, há bem mais de 75 anos ao contrário do que tantos que pretendem simplificar a história querem fazer parecer.

A grande maioria do povo palestino-árabe vive em opressão há décadas. Seja os que vivem em Gaza e West Bank, seja os que são refugiados noutros países árabes como é o caso da Jordânia. A excepção são os poucos que por um motivo ou outro têm cidadania israelita e, como tal, vivem como cidadãos de pleno direito no Estado de Israel. Sim. Há árabes muçulmanos (etnicamente palestinos) cidadãos de Israel. Os segundos, a excepção, podem ser vistos como uma parte resolvida de um assunto complexo. Os primeiros, os oprimidos, são os que deviam motivar toda a sociedade global a encontrar-lhes uma solução que lhes permita viver com dignidade. Já nem refiro a qualidade de vida de países desenvolvidos. Apenas dignidade. E a verdade é que toda a história do conflito nos mostra o contrário.

A Autoridade Palestina reclama os territórios do West Bank e da Faixa de Gaza mas olhar para ambos como similares é, a meu ver, um erro profundo. Por partes: o West Bank vive sob anexação israelita desde 1967 após a já referida vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias. Antes, estava sob o controlo da Jordânia após a primeira guerra Árabe-Israelita de 1948, iniciada 24h após a declaração de independência do Estado de Israel, que havia sido criado sob o pretexto de servir como casa para todos o judeu, algo de particular relevo no pós Segunda Guerra Mundial. Nem Jordânia nem Israel reconheceram em algum momento a plenitude de direitos às pessoas que lá habitavam resultando num povo que efectivamente não conhece a liberdade completa. Desde 1994, com o reconhecimento por parte de Israel da PLO (Palestine Liberation Organization) como representante da Autoridade Palestina, a população do West Bank vive sob o governo da Palestina, em pequenas frações de terreno sem ligação entre si, por restrições impostas pelo Estado de Israel que, além de efectivamente controlar toda a circulação no West Bank, não tem pudor em invadir estes pequenos territórios para controlar a vida dos palestinos. É comum a comparação com o regime de apartheid ainda que, no meu entender, haja uma diferença chave: a segregação imposta por Israel é limitada ao controlo que faz das populações em território palestino. Voltando uns parágrafos atrás, os cidadãos israelitas de etnia palestino-árabe não sofrem de qualquer discriminação (aos olhos da lei) dentro do Estado de Israel. E isto não atenua minimamente a invasão israelita ao West Bank. Mas, a meu ver, a comparação simplista com o regime de segregação racial sul africano carece de assertividade histórica. Em sentido oposto, reclamam os israelitas, é impensável a um judeu tentar viver no West Bank sem que seja raptado ou morto por extremistas religiosos. Algo que Israel usa como pretexto para manter o controlo ilegal sob aqueles territórios. Apesar de tudo isto, o West Bank, é um autêntico paraíso comparado com o outro território reclamado pelo Estado da Palestina.

A Faixa de Gaza, vulgarmente reconhecida como a maior prisão a céu aberto do mundo, vive em constante sufoco e privação de liberdades básicas. A humanidade desistiu de Gaza. É assim desde que nunca foi completamente integrada pelo Egipto em 1948 e, ao invés, transformada num seu estado fantoche, privando os seus habitantes de direitos de cidadania. É assim desde que Israel assumiu o seu controlo em 1967 com a vitória na Guerra dos Seis Dias. E, acima de tudo, é assim desde que Israel tomou a decisão unilateral de abandonar as povoações judias em Gaza em 2005, mas mantendo controlo sob 6 das 7 fronteiras terrestres, espaço aéreo e marítimo e, em 2007, o Hamas toma o controlo político da região num conflito militar contra o Fatah, deixando no entanto Gaza dependente de Israel para fornecimento de água, electricidade e vários bens básicos. Este factor faz de Gaza um estado que pode ser considerado como de facto independente. Com população própria, fronteiras próprias, política externa própria, governo próprio e exército próprio. No fundo, os elementos que constituem um Estado Independente. No entanto, todos estes elementos são controlado pelo Hamas, uma organização terrorista com o objectivo de destruir o Estado de Israel.

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Para o Hamas não existem 2 milhões de civis em Gaza. Para o Hamas existem 2 milhões de peões num jogo de xadrez, prontos a serem sacrificados em nome do fanatismo religioso e da destruição do Estado de Israel. Para o Hamas, a população de Gaza serve como objecto de um brainwash pleno com o objectivo de a converter em mártires pelo propósito de destruição do Estado de Israel, agravado pelo facto da população de Gaza ser inacreditavelmente jovem, levando a que muitos não conheçam valores de vida além dos que lhes são impostos pelo Hamas. Para o Hamas, a Autoridade Palestina que governa o West Bank representa uma traição à sua causa ao reconhecer a existência do Estado de Israel. Para o Hamas, quanta maior for a carnificina numa invasão de Israel a Gaza maior será o desgaste de Israel junto da Comunidade Internacional ou, pior para os civis mas melhor para o Hamas, mais fácil será a justificação de um “ataque preventivo” a Israel por parte de uma força externa, nomeadamente o Irão. E isto torna a situação de Gaza amplamente diferente à do West Bank.

No West Bank, a Autoridade Palestina reconhece a existência do Estado de Israel e, inclusivamente, o seu presidente, Mahmoud Abbas, veio condenar os ataques do Hamas afirmando que os mesmos não defendem a libertação da Palestina. Em Gaza, o Hamas tem o propósito claro de exterminar Israel levando a cabo o famoso “from the river to the sea, Palestine will be free” tantas vezes ecoado por certo membros do espaço de opinião pública no Mundo e, claro, Portugal.

É muito fácil dizer que “o Hamas não é a Palestina” para justificar uma tomada de posição contra Israel. É fácil dizer que “o Hamas é uma organização terrorista; Israel é um estado terrorista”. É sobretudo fácil dizer isso quando, por mais experiências internacionais que se tenha, se disfruta de um espaço europeu pleno de privilégio e não se vive paredes meias com alguém que pura e simplesmente nos quer exterminar. O problema é que em termos militares isso significa pouco. É o Hamas que controla Gaza; é o Hamas que manobra espaços civis em Gaza como bases militares, usando a sua população como escudo; é o Hamas que dispara rockets de zonas civis, usando a sua população como escudo; é o Hamas que canaliza os apoios que Gaza vai recebendo das Nações Unidas como armas militares, usando a sua população como escudo; é o Hamas que impede a circulação para fora das zonas sob ataque iminente em Gaza, usando a sua população como escudo; é o Hamas que anseia pela morte de inocentes para poder fazer o papel de vítima, usando a sua população como escudo e, tão mau ou pior, é o Hamas que, se dispusesse do poderio militar de Israel, já tinha levado a cabo a aniquilação do Estado de Israel.

Com todas as letras, é o Hamas que tem de ser combatido, derrotado e extinto para que se possa sequer voltar a pensar num novo processo de paz como o que levou aos acordos de Oslo de 1994.  Como o combater de forma eficaz reduzindo ao máximo as baixas civis é uma pergunta dificílima mas qualquer tentativa de legitimar os atentados de 7 de Outubro de 2023 ou relacioná-los sequer com a libertação da Palestina é estar do lado dos que querem cumprir agenda política e não dos que procuram encontrar uma solução sustentável. Mas a hipotética extinção do Hamas seria apenas o início. A norte, no Líbano, reside um “outro Hamas”, o Hezbollah com propósitos em tudo idênticos. Enquanto ambos se mantiverem em actividade será difícil pensar num processo de paz. Ainda assim, o Hamas e o Hezbollah não devem servir de bodes expiatórios do conflito. Israel, hoje governada por Netanyahu terá de uma vez por todas respeitar o direito internacional e pôr fim à ocupação dos territórios reconhecidos como parte da Autoridade Palestina, assumindo-se como ponte para a negociação com a Autoridade Palestina, e não o obstáculo que tem sido. A solução de dois Estados, a única que não significa uma provável limpeza étnica palestina ou judia, vai exigir a prevalência do Direito Internacional e, desse modo, ambos os lados terão de estar prontos para fazer cedências. Para que tal aconteça, a comunidade internacional terá de deixar de ser conivente com os distúrbios sociais da região que levam de forma inequívoca à ascensão de lideranças extremadas e passar a trabalhar para os colmatar. A história deste conflito já nos mostrou que líderes moderados são vistos como traidores às suas nações pelas fações mais extremistas dos próprios povos, sejam eles árabes ou israelitas sendo o caso mais flagrante o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995 por um israelita judeu fanático. Chegou a hora de criar pontes de moderação e parar de contextualizar extremistas e líderes fantoche.

E agora? Certamente não encontraremos num par de páginas a solução para um dos conflitos mais complexos da história da humanidade. Mas há alguns passos que considero como fundamentais para um futuro de paz: o fim absoluto do Hamas e Hezbollah; reconhecimento por parte de Israel de uma Autoridade Palestina como Estado de plena soberania, sobretudo e num futuro mais imediato no West Bank; facilitação por parte de Israel de acordos que possibilitem o desenvolvimentos das sociedades principalmente e num futuro mais imediatio no West Bank; pressão das Nações Unidas para que Israel cumpra o dever de acabar com os colonatos no West Bank; envolvência plena das Nações Unidas na resolução da catástrofe social que é a Faixa de Gaza, através de assertividade nos apoios concedidos, garantindo que estes são efectivamente usados para o desenvolvimento social e reconhecendo o falhanço total do desleixe até agora registado. Do mesmo modo, será fundamental acabar com o efectivo bloqueio externo a Gaza por parte de Israel. Atirar Gaza, estilo “batata-quente” para uma já de si fragilizada Autoridade Palestina (com muitas culpas de Israel neste ponto), ignorando que Gaza precisa de mais tempo e apoios para se poder desenvolver levaria a um aumento dos desequilíbrios locais, afastando aquele povo de um futuro digno. Só num mundo hipotético sem Hamas e Hezbollah, com um West Bank sustentável de um ponto de vista social e governado por uma Autoridade Palestina que prova a sua capacidade de governar a sua sociedade e se mostra pronta para regressar a Gaza se poderá pensar em passos mais avançados na resolução do conflito como o estatuto de Jerusalém ou o direito de retorno palestino. Noutra nota ainda, mas de grande importância para a geopolítica global, dar continuidade aos Acordos de Abraão, preferencialmente de forma a que não se ignorem outras ocupações territoriais como a de Marrocos no Saara Ocidental que poderá resultar num outro escalar de violência. Para já, a maior vitória do Hamas (e do Irão) foi o suspender das negociações entre a Arábia Saudita e Israel.

Em Portugal algumas reações têm sido de bradar aos céus. Se por um lado pouco há a criticar à postura até agora seguida pelo governo português, de ponderação e cooperação com a União Europeia, no espaço à esquerda do PS, salvando a excepção do posicionamento do Livre de Rui Tavares que soube ser o adulto na sala, o mesmo não se verifica com os dois antigos parceiros de geringonça do PS. Umas meras 24h após os atentados do Hamas, é anunciada uma manifestação “pró-Palestina” endossada pelo Bloco de Esquerda na qual se pôde ouvir em directo uma ex-candidata pelo BE dizer, ipsis verbis, que os ataques terroristas do Hamas representam “todas as fações políticas da Palestina e todo o povo palestiniano”. Uns dias mais tarde, a antiga líder do BE, Catarina Martins, vem pomposamente apelidar o Hamas de extrema-direita. Das duas uma: ou temos membros do BE a validar ações de grupos que consideram de extrema-direita ou temos a comunicação do BE a caminhar na direção da opinião pública, desprovida de qualquer espinha dorsal política. Em registo semelhante, o PCP conseguiu fazer todo um comunicado sem qualquer condenação aos atentados do Hamas, sendo que, neste caso, a surpresa é nula atendendo ao registo quase soviético que rege a política internacional do “Partido”. António Costa não teve dificuldades em dar a mão a estes partidos em 2015 para salvar a sua carreira política. Seria interessante perceber, pela voz do próprio, se estaria disposto ao mesmo numa futura eleição.

Diariamente vão surgindo notícias de manifestações de carácter meramente anti-semítico (diferente de lutar pela efectiva libertação da Palestina) o que comprova a necessidade de um papel forte da comunidade internacional em combater os episódios que nos levam a tempos muito obscuros do final da primeira metade do século XX. Nesse sentido, a visita de Biden a Israel poderá ser fundamental para a resolução de (mais) um episódio numa longa história, numa zona que até pode ser vista como pêndulo para a polarização na sociedade civil global. A paz é a melhor arma de segurança. Para a alcançar será necessário ferir orgulhos e fazer cedências. Saibam os líderes do mundo actual trabalhar nesse sentido