Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira,
Começo por lhe dizer que sou admiradora da obra de Francisco Simões – só por isto, decerto calculará o que se segue.
Venho, portanto, e sem delongas, propor-lhe que faça a fineza de enviar a estátua do meu querido Camilo e do seu amor nu – seja ele quem eu penso que é, a Musa, quem Francisco Simões afirma ser, os amores de Camilo assim substanciados num corpo de Mulher, o que não deixa de ser também a Musa, ou Ana Plácido, quem muita gente pensa ser – para a minha casa. Moro num T1, é certo, mas hei-de fazer espaço para acomodar o casal de bronze.
E agora passo a explicar.
Estávamos em 1987. E eu em Lisboa. Estudante. Na faculdade, as bibliografias na lista de compras são longas e o dinheiro curto. No meu caso, esta situação era agravada pelas assíduas visitas religiosas à livraria Buchholz, à Arco-Íris, e à 111, uns passos antes da galeria onde ia encher a retina para sonhar em verso. A verdade é que desgraçava o orçamento em livros não requeridos, porém muito desejados. Para não falar dos maravilhosos catálogos pesadíssimos, cavernas de Ali-Babá, cheios de tesouros inalcançáveis em regra, tangíveis em excepção: ainda me lembro do dia em que encomendei, na 111, a obra completa de Vinícius de Moraes em capa dura e papel bíblia – uma alegria para a vida.
Uma tarde, estava no Chiado, mas outro, não este que agora temos, intransitável e turístico de tuk-tuk, quando, inesperadamente, na Bertrand, vejo um livro desconhecido e belo: O Corpo Iluminado. Poemas de David Mourão-Ferreira e desenhos de Francisco Simões. E dos poemas nascidos desses desenhos disse posteriormente o poeta, «como se dos traços rompessem, revoadas de sílabas». Um livro feito sob o signo de Eros, força explosiva da vida, e a celebração dessa chama original na nudez ora clara ora obscura do corpo da mulher em flor: «De húmido lume tu me incendeias».
Foi assim que conheci a obra de Francisco Simões. E nunca mais deixei de a querer conhecer.
É pasmoso que em 2023, em Portugal, não na Síria ou no Irão, se refira ao corpo nu da mulher como «um exemplar mais ou menos pornográfico». E, no mínimo, vergonhoso, referir-se à remoção da escultura de Francisco Simões, como o «favor de desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça e despejá-la onde não possa agredir a memória de Camilo».
Tanto quanto me é dado ver, a estátua, a menos que caia em cima de alguém, é menos capaz de agressão do que os «ilustres» signatários da carta com os quais o Exmo. Sr. Presidente Rui Moreira concorda, pois considera a obra de Francisco Simões «deselegante». E já que decidiu pela «remoção do objecto», reafirmo a minha inteira disponibilidade para o receber em minha casa onde, a despeito do seu coração de bronze, será mais feliz do que nos «depósitos municipais».
Com os melhores cumprimentos,
EV