Para quem gosta de análise política, as vésperas da discussão do Orçamento de  Estado são sempre tempos de reflexão, dúvida e entusiasmo, mormente quando a  simetria parlamentar é propícia a grande instabilidade.

Ao pensar retrospetivamente sobre os últimos meses deparamo-nos com uma situação que tem tanto de contraditória quanto de peculiar: ambos os partidos da oposição que têm o poder para aprovar a lei já deram a entender que o fariam, mas também que não o fariam. Esta aparente  contradição por parte de ambos, sendo análoga na forma, difere amplamente na  substância, o que leva a que o PS seja o único a reunir as condições necessárias para  negociar com o Governo.

O conjunto de incentivos válidos mas contraditórios a que  Pedro Nuno Santos está sujeito merecem uma análise mais detalhada, como a merecem  também aquelas que virão a ser as interações entre o líder da oposição e o Governo.  Merecem-na pois são o pilar essencial para explicar a incerteza que envolve este  processo de negociações, sendo certo também que são absolutamente necessários para  extrair qualquer conclusão no que ao futuro diz respeito. Ainda que ao longo de todo o processo tenha sido pouco relevante, André Ventura revelou-se recentemente uma peça  indispensável deste processo, pelo que a análise aos seus comportamentos passados é  fulcral para perceber, não só os seus comportamentos individuais futuros, mas também  o modo como estes poderão impactar os demais. O propósito das linhas que se seguem é  evidenciar a complexidade do jogo político, tal como demonstrar como uma decisão de  um “jogador” impacta o resultado final global.

Inicialmente, importa notar que Pedro Nuno Santos herda das eleições a situação  política mais difícil de todos os partidos da oposição.

Por um lado, quer impedir o  Governo de se manter no poder, por saber que quanto mais tempo o fizer, mais obra este  terá para vender em eleições futuras, somando-o, claro está, à consolidação definitiva da  sua imagem como executivo junto das pessoas.

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Por outro lado, sabe que se for  percepcionado como o causador de eleições e da subsequente instabilidade política,  agravado por ter sido confrontado com propostas de negociação razoáveis, poderá correr  o risco de ser gravemente penalizado (crença esta respaldada na história democrática  portuguesa). Mais, sabe que foi oscilante e errático ao longo da legislatura, que numa  fase em que o Governo passou por dificuldades, e escolheu como o seu candidato às  eleições europeias um independente que suscitou todo o tipo de polémicas (ao contrário  de Marta Temido, um peso pesado unânime) o PS ganhou por escassos votos.

Como se  não bastasse, sabe que é praticamente impossível resultar de hipotéticas eleições  vindouras uma maioria à esquerda que lhe convenha. Outra agravante é o facto de  Pedro Nuno ter o seu partido dividido. Não só porque os seus autarcas não querem ver a  execução do PRR mais atrasada do que já está, mas também porque António Costa  manifestamente mandou os que lhe são leais baixarem as armas apontadas ao executivo e aguardar calmamente por tempos políticos diferentes (resta saber se o fez em troca do  apoio indispensável do Governo à sua candidatura ao Conselho Europeu ou não). Aliás, a mais recente reunião do grupo parlamentar do PS é a prova de que os “costistas” estão alinhados, e a pensar no médio/longo prazo do partido, seja ele qual for (a seu tempo  será tema…).

Por último, o “spin” político que o aparato do PS teria que fazer numa situação de campanha parece ser demasiado avassalador e complicado. Ao fim e ao  cabo, teria que arranjar um estandarte para justificar o facto de o País ir para eleições  escassos meses após delas ter saído.

Para já, o mais perto que existe do tal estandarte é o  IRS Jovem e o IRC que, até ao momento, são o entrave à viabilização do Orçamento  por parte do PS. Ao associar o destino do OE2025 ao destas duas medidas, Pedro Nuno  cometeu um colossal erro político por dois motivos.

O primeiro, o facto de se focar em  duas medidas específicas prova que não conseguiu negociar matéria de política  estrutural, nomeadamente reformas nas áreas da saúde ou da educação (deixando pairar  no ar a suspeição de que, se não o fez, é porque não teria mudado grande coisa). Além  disto, duas medidas deste cariz parecem insuficientes para sujeitar o País a um novo  processo eleitoral.

O segundo motivo prende-se com o facto de, ao ter escolhido estas  duas medidas como o objeto da negociação, ter encurtado largamente o escopo da  mesma. Ao ter revelado que aquilo que separa a viabilização do Orçamento do seu  chumbo são estas duas medidas, o PS deixa que o Primeiro-Ministro decida o futuro do  mesmo documento: se o quiser fazer aprovar deixa cair estas medidas, se quiser forçar  eleições, mantém-nas. Em termos negociais, o líder da oposição enfraqueceu em larga  medida a sua posição.

Portanto, seria de esperar que a situação de Pedro Nuno Santos fosse precária, e  que confrontado com a escolha entre a aprovação ou não do OE2025 ficasse entre a  espada e a parede.

Assim seria, não fosse André Ventura. Contextualizando, o partido  Chega e o seu líder provaram ao longo dos últimos meses que, em matéria de  negociação orçamental, são imprestáveis. Em escassos meses apenas, foram capazes de  adotar todo o tipo de posições no que ao Governo, primeiramente, e ao orçamento, mais  recentemente, diz respeito. Deste modo, o Governo desistiu das negociações com o  Chega logo após as mesmas se iniciarem, resultando em meses de insignificância para o  último.

Passados estes meses e chegados à apresentação e discussão do Orçamento de  Estado, André Ventura parecia encaminhado para fazer furor. Após meses afastado da  ribalta, encontrava-se, por fim, na posição que sempre quis: se o PS alinhasse com a AD  e viabilizasse o Orçamento, diria que ficava provado que não havia diferença entre os  dois e que o infame “bloco central de interesses” estava de volta. Se, ao invés, o PS  decidisse votar contra o Orçamento, diria que a AD e o PS eram irresponsáveis, e que  depois de alienarem o Chega, não conseguiram entender-se. De qualquer das formas,  voltaria a entrar no debate, e logo com estatuto inatacável.

Sucede que na véspera da  apresentação do documento à Assembleia da República, André Ventura afirmou que se o  PS não o aprovasse, ele próprio o faria, revogando aquilo que disse ser “irrevogável”.  Num ápice, desperdiça a sua vantagem, conquistada com meses de sacrifício e, uma vez  mais, reduz-se à sua pequenez. A ironia é obviamente fatal: o grande partido de protesto emergente, destinado a acabar com o bipartidarismo em Portugal, não passa de uma  muleta da AD, acabando a viabilizar um Orçamento que o Governo negociou com o PS.

Em suma, importa, entre outras coisas, destacar aquilo que pode resultar do que  já foi mencionado.

Em primeiro lugar, o grande vencedor deste processo é Pedro Nuno  Santos, que passou de estar confrontado com uma escolha aparentemente impossível,  para ter a liberdade de votar contra o Orçamento de Estado sem grandes repercussões  políticas. Mais, consegue introduzir no mesmo documento as imposições que fez ao  Governo quando era o seu único parceiro negocial. Importa notar que isto se deve única  e exclusivamente a André Ventura, sendo o líder da oposição pouco responsável pela  mudança da sua fortuna.

Em segundo lugar, o único interveniente que trilhou o seu  caminho sem erros crassos, Luís Montenegro, acaba beneficiado, mas não tanto quanto gostaria. Após colocar-se numa posição de vantagem sobre o PS, tendo encurralado o  seu adversário direto, a última intervenção do Chega torna esta situação aceitável para o  executivo, mas não desejável. Mesmo continuando a governar, garantindo assim o seu  objetivo último, o facto de ao longo da campanha ter reiterado a frase “Não é não” a  propósito de negociações com o Chega pode agora ser usada como arma de arremesso  pela oposição à esquerda, resta saber se resulta. Pior ainda, o facto de este Orçamento de  Estado ter sido viabilizado com a aprovação do Chega dificultará em larga medida a  viabilização do próximo por parte do PS, perdendo o Primeiro-Ministro o seu parceiro  preferencial de diálogo.

Por fim, André Ventura mostrou, uma vez mais, não conseguir  escapar a quem verdadeiramente é. De facto, continua a demonstrar não resistir ao  holofote da ribalta política, sendo certo que para o alcançar dirá tudo. Por isso mesmo,  Luís Montenegro não deve encarar as suas afirmações, mesmo aquelas em diz que vai  viabilizar o Orçamento de Estado, com um valor estanque, pois manifestamente não o  têm. Está perante alguém que dirá tudo para ter ganhos, incluindo mentiras e meias  verdades. Portanto, tem que lidar com o Chega com um certo distanciamento e cautela  (with a cubic meter of salt, como diriam os ingleses), e jamais colocar-se numa posição  de dependência face a este partido, o que passa por não alienar o PS do processo  negocial e deixar o maior número de portas abertas. Em termos práticos, Ventura não só  consegue diminuir a sua posição, como potenciar a do PS, deixando o Governo mais  frágil no entretanto.

Concluindo, ao abordar este tema como se de um jogo se tratasse tiramos ilações interessantes sobre como as ações de uns afetaram brutalmente o  desfecho dos outros. Pedro Nuno Santos jogou mal, mas saiu muito reforçado, Luís  Montenegro, apesar de ter jogado bem, não saiu tão reforçado quanto poderia e, finalmente, André Ventura jogou mal, saiu diminuído, mas mudou totalmente a situação  dos restantes. Fascinante, portanto!