E, depois de deambular sozinho pelas ruas do bairro mais alto da cidade, bebendo de uma solitária e complexa garrafa, John chega atrasado ao seu compromisso. Atrasado escassos minutos do compromisso, atrasado anos dos seus colegas (amigos seria ambicioso), cuja mentalidade pós-moderna John não conseguiu (nunca procurou fazê-lo, diga-se em abono da verdade) acompanhar.

O reencontro de pessoas que passaram por experiências profissionais semelhantes, mas cuja vida encarregou de seguir destinos completamente diferentes é, para muitos, motivo de grande alegria e nostalgia. Para os restantes, nada é senão motivo de grande transtorno: fuga do passado, ou, a realização de que se encontram numa infindável busca para, a ele, regressarem.

O sítio do reencontro era obsoleto, frio e transpirava a mofo. Um grupo de pessoas ocupava, ruidosamente, o centro. As cadeiras compridas, devastadoras para qualquer olhar ligeiramente mais sensível, acompanhavam as pilhas cinzentas de guardanapos, entregues à vã esperança de que alguma boca lhes fizesse vontade. O espaço outrora destinado a servir de suporte a Pomares, Negreiros e Amadeos, oferta de alguns considerados “da casa”, transformou-se numa parede despedida (não só dos quadros, mas de cultura). O seu fundo madrepérola convive diariamente com um amarelete empedernido, que brinda qualquer olhar com um bafo a cigarro. As mesas, essas sim, contrastavam com a pobreza decorativa do restante interior. Dotadas de uma madeira causticada pelo tempo, coabitada por uma beleza intemporal, enriquecidas por pequenos buracos rústicos e uma cor exótica. O seu escalpe serviu, em tempos, de apoio às maiores personalidades contemporâneas. No interior daquele retrógrado buraco, apenas as mesas podiam fantasiar com uma venda a outro dono que não Paul. Apenas as mesas podiam sonhar.

Em sentido contrário, a fachada era exuberante. A remodelação ao prédio do início do século XX teve sempre em vista preservar as suas origens, e, através delas, todas as minúcias e pequenos contornes que faziam com que, ali, encaixasse que nem uma luva. Estava perfeitamente adequado ao que o rodeava, mas reservava para si um destaque especial e subtil. A porta, branca e ondulada, com um puxador castanho, combinava com o cabeçalho, também ele branco. As janelas basculantes, decoradas estrategicamente para que não fosse possível ver o interior, permaneciam sempre entreabertas. Nenhum transeunte poderia esperar entrar num bar excessivamente chic, mas a impressão de um sítio pequeno e acolhedor, culturalmente rico, com a heterogeneidade indispensável a qualquer sítio com vida, era unânime. Paul, com aparente cinismo e habilidade, conseguia enganar muita gente, e, portanto, não eram poucos aqueles que entravam ao engano. Esse cinismo, numa segunda fase, esbarrava na realidade e, por isso, poucos eram aqueles que se refestelavam e habitavam o seu bar. No fundo, a sua estratégia estava totalmente errada.

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Paul é, na verdade, descendente de uma linhagem de grandes empreendedores da restauração. O sangue que partilha com os seus antecessores transformara um pequeno  cubículo num bairro agitado, mas degradado e cheio de prostituição, num marco da capital. Aqueles 230 metros quadrados assistiram a quase tudo: ruturas entre personalidades políticas, acordos duvidosos entre outras tantas, despedidas, começos e términos de relações e, acima de tudo, conversas. Umas importantes, outras nem tanto. Todavia, se há algo que, invariavelmente, acompanhou a sua história foram palavras. E, hoje, até elas escasseiam.

Portanto, o pensamento que assombrava John, mais do que o reencontro com os seus colegas, era o destino do local onde se encontrava. Ao entrar na casa de banho, sentiu um aroma peculiar. Sentiu a entrarem-lhe pelas narinas o milhão de histórias que os seus pais e tios lhe tinham contado daquele sítio, sendo as mesmas, rapidamente, intercetadas pelo cheiro a sexo insignificante, preservativos usados e autoclismos por puxar. Mais que tudo, John ficava possesso com a mediocridade de Paul, com a falta de entusiasmo para com a herança que havia recebido anos antes. Tornara-se incompreensível, para ele, como é que alguém não sente o peso de um legado tão grande nas suas costas; como é que esse mesmo alguém, navegando por facilitismos e conformismos desta vida, arruína, através do entorpecimento, algo cujas dimensões nem consegue vislumbrar. Essa falta de entusiasmo converteu-se em anos de desertificação do bar. A um adulto (chamar-lhe velho apenas apelaria à sua mentalidade) atrás de um balcão solitário, cuja falta de ambição continua a chocar todos aqueles que conhecem a história da sua família.

Um sítio cheio de potencial, onde os dias em que foi mais que isso ficam cada vez mais afundados no passado. A um grupo de pessoas pálidas e desinteressantes, que, de si, pensam muito mais do que a transparente realidade que as consome permite concluir.

Para John, conviver neste ambiente era mais do que o próprio conseguia suportar. A sua vida resumia-se a uma escolha: reunir em si toda a força anímica deste mundo, e romper os horizontes do chão que pisava, ou, resignar-se. Saiu com um estrondo da casa de banho, e, para seu espanto, estava a sós com o dono. Dez anos tinham passado, sem que o mesmo desse conta. “Como é que isto aconteceu?”, interrogou-se. Melancólico, sozinho e determinado (contrastando em larga medida com os “habitués” do bar) despediu-se de Paul, para sempre. Saiu de Portugal.