A democracia, convém recordá-lo, baseia-se sobretudo em duas coisas: o voto e a deliberação pública. O voto deu a legitimidade democrática ao PS de implementar o seu programa. Porém, um programa eleitoral e um programa de governo são como os contratos. São sempre incompletos, pelo que há sempre aspetos omissos e lugar para interpretações diversas. Resolvida a questão do voto, estamos agora no campo da deliberação, na certeza de que há sempre lugar a escolhas alternativas.

Este orçamento 2022 é o início de um caminho de legislatura, que está delineado em termos macroeconómicos e orçamentais no programa de estabilidade e que importa discutir. Fico satisfeito de ouvir de António Costa e Fernando Medina reafirmar que o governo quer prosseguir o caminho das “contas certas”. Como venho defendendo há muito, não deve ser apanágio dos partidos de direita a sustentabilidade das finanças públicas, pois sem ela não há nem Estado social nem a possibilidade de políticas orçamentais expansionistas em tempos de recessão económica (sem fazer disparar o peso da dívida pública). Temos, porém, que densificar o conceito e alertar para os seus riscos.

Podemos ter “contas certas” com mais ou menos peso do Estado na economia, leia-se mais ou menos despesa e impostos. Podemos ser mais ou menos rápidos a reduzir o peso da dívida no produto, ou seja, a reduzir o défice e as necessidades de financiamento líquidas das empresas públicas. É possível fazer o ajustamento orçamental mais do lado da despesa ou do lado da receita. Pode reduzir-se o peso da despesa pública de múltiplas maneiras: diminuindo o apoio às empresas, tendo uma política de austeridade em relação ao funcionalismo público (redução dos rendimentos reais), ou com ganhos de eficiência quer na articulação entre administração central, regional e local quer no setor empresarial do Estado.

Os principais riscos para as “contas certas” são dois: um fraco crescimento económico, e as necessidades de financiamento público seja do setor empresarial do Estado (SEE) ou não. Neste ano de 2022, o OE prevê que cerca de dois terços do acréscimo da dívida pública resultam do défice orçamental e um terço da aquisição líquida de ativos financeiros, onde se inclui por exemplo a injeção de capital na TAP. Sobre esta pouco sabemos em relação ao plano de recuperação futuro, embora saibamos os significativos resultados negativos do ano transato. Não podemos deixar que o SEE seja um sorvedouro injustificado de impostos dos contribuintes, como ainda está a ser o caso das parcerias público privadas (PPP) na qual este OE inscreve este ano a módica quantia de 1442 milhões de euros em encargos líquidos. Empresas públicas que desempenham um serviço público devem receber indemnizações compensatórias adequadas do Estado na base de um contrato de serviço público e é certo que situações em que tal não aconteceu no passado (e.g. CP) devem ser corrigidas. O que não se pode aceitar é que se façam opções políticas, nomeadamente no setor dos transportes, que não sejam claras para os cidadãos, quer na dimensão dos benefícios públicos que poderão ter, quer nos custos associados. A lição das PPPs deve estar sempre presente, nomeadamente em novos troços de ferrovia. É preciso que a sociedade saiba qual a análise custo benefício (incluindo obviamente os benefícios ambientais e sociais) de se construir cada novo troço ferroviário significativo. Não pode ser na base de um vago conceito de “serviço público” que se aceita passar cheques do Orçamento do Estado, independentemente do volume de tráfego previsto. Temos instituições diversas – o Tribunal de Contas e o Conselho de Finanças Públicas (CFP)– que deveriam olhar com redobrada atenção para o SEE, pois é ele que cada vez mais irá explicar a dinâmica da nossa dívida pública.

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Não cabe neste artigo uma análise mais aprofundada do OE2022 que será feita quer por instituições públicas (CFP e UTAO) quer pela sociedade civil (Institute of Public Policy-Lisbon). Que não pugna muito pela transparência já o referimos nesta semana aqui no Observador. De qualquer modo os grandes números são já claros neste orçamento. A executar-se conforme apresentado, o peso do Estado na economia reduz-se significativamente, a carga fiscal (incluindo contribuições sociais) reduz-se muito ligeiramente, a consolidação orçamental faz-se sobretudo do lado da despesa através da redução dos apoios à economia (subsídios) e também pela redução do peso das despesas com pessoal. O acréscimo salarial da função pública é muito inferior à taxa de inflação prevista significando a continuação da degradação do poder de compra real dos funcionários públicos verificada na última década.  O investimento público, beneficiando dos fundos europeus, tem o maior aumento de sempre (de 5,3 mil  para 7,3 mil milhões de euros) não sendo claro o impacto que terá no aumento da competitividade ou do crescimento potencial da economia portuguesa. Do lado da receita, a eliminação do pagamento especial por conta (PEC) pouco impacto orçamental terá e economicamente parece-me uma opção errada (uma micro ou nano empresa que não consegue pagar o PEC, não é propriamente uma empresa…) já o aumento do mínimo de existência em sede de IRS para proteger as famílias de menores rendimentos, neste período inflacionista, me parece plenamente justificável.

É expectável, se os partidos de oposição forem razoáveis, que em sede parlamentar haja bem menos propostas de alteração do que em anos anteriores com governos minoritários. O processo orçamental, que tem tido cada vez mais propostas de alteração (1547 no OE2021), estava a tornar-se caótico e ingerível, com deputados sem saber no que votavam. Cem propostas de alteração neste OE2022, no total, são mais do que suficientes, dada a legitimidade democrática da maioria absoluta. É razoável esperar que as propostas mais emblemáticas das oposições, do ponto de vista ideológico, sejam apresentadas. Haver poucas propostas, mas relevantes, permitiria concentrar a atenção do debate político no essencial, e não numa miríade de propostas que impossibilitam qualquer discussão séria. O PS tem obviamente o poder absoluto do voto de as derrotar, mas tem também a responsabilidade democrática de contra-argumentar caso discorde dessas propostas, ou de incorporar algumas no OE, caso sejam razoáveis.

PS. Para mais desenvolvimentos sobre o que penso já deste Orçamento de Estado veja a Conversa Capitalna entrevista Antena1/JN disponível a partir das 15h de hoje (também no Negócios na segunda-feira). Porém, uma análise mais detalhada será feita nas próximas semanas pelo Institute of Public Policy – Lisbon, quer através do Orçamento Cidadão quer do Budget Watch, com a participação de um relevante painel de economistas nacionais.