Várias almas sensíveis têm tido a gentileza de nos informar, com a solenidade caraterística dos grandes momentos, que vivemos um período de singular perigo na democracia portuguesa. A litania das coisas que nunca estiveram tão mal é longa: no Ministério Público, a procuradora-geral da República é incapaz de escrutinar o que é feito pelos titulares de cada processo; o Ministério Público age como um Maquiavel refinado e faz questão de consultar atentamente o calendário político quando decide investigar, ou fazer buscas, ou constituir arguidos, ou acusar; o Ministério Público faz escutas telefónicas sem controlo nem cautela, como se fosse uma nova PIDE; o Ministério Público tem um enorme poder que não é fiscalizado por ninguém; o Ministério Público demora tanto tempo a investigar que a Justiça se torna incapaz de fazer justiça; o Ministério Público não consegue, ou não sabe, ou não quer investigar fugas de informação; o Ministério Público tem o plano secreto de abater “os poderosos” pelo simples facto de serem “poderosos”. Vendo tudo isto, lendo tudo isto e ouvindo tudo isto, qualquer pessoa comum será desculpada por pensar que estamos nas vésperas do Apocalipse ou de uma “República de magistrados” — o que, para os críticos, é a mesma coisa.

Perante um cenário tão assustador, até houve quem, em busca de inspiração ou consolo, invocasse os velhos tempos de José Narciso da Cunha Rodrigues à frente do Ministério Público. Os millenials e os integrantes da geração Z talvez não o conheçam. Por isso, é útil lembrar: Cunha Rodrigues é o procurador-geral da República que ocupou o cargo durante mais tempo em democracia — foram 16 intermináveis anos, entre 1984 e 2000. No auge do seu poder, as pernas dos políticos tremiam de cada vez que ouviam o nome dele. A dada altura, Cunha Rodrigues parecia tão inamovível como o Cristo-Rei — como ele estaria sempre entre nós de alguma forma, ao aproximar-se o final do seu mandato no Ministério Público os boatos de que andaria a preparar uma candidatura à Presidência da República espalharam-se de forma descontrolada pelos corredores do Governo, do Parlamento e das redações. Esta semana, com Lucília Gago a ser atacada à esquerda e à direita, Cunha Rodrigues reapareceu. Deu uma entrevista interessante à SIC — mas não tão interessante como uma outra entrevista dada pelo mesmo Cunha Rodrigues à RTP em 1999. Nesse ano, o procurador-geral da República estava prestes a sair do cargo (mas ninguém sabia) e acabara de tomar posse um novo governo, liderado por António Guterres e com o jovem e promissor António Luís Santos da Costa como ministro da Justiça.

Como se costuma escrever nos maus romances, a tensão era tão grande que se sentia no ar, especialmente por causa de dois processos-bomba: no caso das “viagens-fantasma”, políticos do PS e do PSD estavam a ser investigados por causa de deslocações que o Parlamento pagou indevidamente a deputados durante anos; no caso da Universidade Moderna, uma violação do segredo de justiça transformara-se num inesperado escândalo ao provocar a queda do principal suspeito, o diretor da Polícia Judiciária.

Nesta entrevista, Cunha Rodrigues aparecia seráfico e pausado, como sempre. Logo no início da conversa, Judite Sousa perguntou se havia algum fundamento na crítica que lhe estava a ser feita de ter realizado “uma gestão política do processo das viagens-fantasma”. A resposta foi imediata: “É totalmente infundada. Quem decide os processos não sou eu, são os magistrados. Eu não pressiono os magistrados porque não tenho os processos. Mas nunca o faria, obviamente.” E ainda acrescentou, com um estilete: “Os timings políticos são uma forma clássica de o poder se defender de acusações.”

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A jornalista insistiu: “Não causa estranheza que Luís Filipe Menezes tenha sido indiciado na altura em que estavam a ser elaboradas as listas de deputados à Assembleia da República ou que Miranda Calha tenha sido acusado em véspera da sua tomada de posse como secretário de Estado?”. Cunha Rodrigues retorquiu, sem parar para respirar: “O sr. dr. Luís Filipe Menezes sabia do processo em maio ou junho de 1999, muito antes de ser constituída a lista de deputados. O dr. Miranda Calha também conhecia o processo dois meses antes da tomada de posse do governo.” E ainda acrescentou, com um sorriso irónico praticamente indetectável: “Não temos nenhuma lei que nos diga que quando há eleições devemos deixar de investigar. Na altura das eleições, os protagonistas defendem-se sempre invocando timings políticos.”

Não invocaram apenas “timings políticos”. Confrontado com a investigação, Luís Filipe Menezes fez a mesmíssima comparação que hoje tanto fascina Rui Rio: acusou o Ministério Público de ser “a nova PIDE”. A reação da Procuradoria-Geral da República não foi mansa, como informou Cunha Rodrigues: “Foi movido um processo ao sr. dr. Luís Filipe Menezes. É crime desprestigiar uma instituição com essa violência”. Meditando sobre as reações mais exaltadas dos políticos, Cunha Rodrigues concluía: “Pensam que o Ministério Público está sempre reunido a fazer conjecturas sobre as pessoas que vai envolver ou acusar, atribuem-nos estas maquinações maquiavélicas.”

Nesta longa entrevista, em que Judite Sousa lembrou que “há quem diga” que Cunha Rodrigues “tem muito poder, poder a mais, um poder absoluto”, houve ainda tempo para falar sobre duas outras acusações que são feitas ao Ministério Público desde o começo dos tempos. Sobre o facto de a investigação às viagens-fantasma estar a demorar mais de quatro anos, Cunha Rodrigues foi lacónico: “É o tempo necessário para, com profundidade e isenção, analisar os dossiês e os documentos dispersos.” Já sobre o escândalo da violação do segredo de justiça no caso da Universidade Moderna, foi quase filosófico: “Tenho aberto muitos inquéritos aos meus próprios serviços e aos meus próprios magistrados. Geralmente, o segredo de justiça é uma categoria etérea. O processo anda nas mãos de muitas pessoas: juízes, Ministério Público, advogados, funcionários, polícias, peritos, todos os intervenientes são em princípio suspeitos. São muito raros os casos em que conseguimos esclarecer a situação.”

Portugal, 1999. Portugal, 2024. Passaram-se 25 anos, mas estamos na mesma — sem emenda. Como dizia um diplomata célebre, não aprendemos nada e não esquecemos nada.