Há um spot na rádio Observador onde se ouve um senhor general, um dos muitos que agora são comentadores, a dizer que “a segurança é o mais precioso dos bens”, ou uma aproximação disto, e, continuando, “os bens pagam-se”. Na verdade, percebendo a linguagem do distinto militar, a segurança não é o mais precioso dos bens. O mais precioso é a saúde. A segurança é essencial porque é um determinante da saúde, porventura um dos mais importantes. Sem segurança, seja de que tipo for, é muito difícil, diria que é impossível, atingir e manter o estado de completo bem-estar físico, mental e social que define saúde. Quanto ao resto, o custo e o preço da manutenção da saúde, estamos de acordo. Alguém tem de pagar.
Em Portugal o Estado, em larga maioria com a receita que provém dos nossos impostos, paga uma parte da sua obrigação de proteger a saúde dos cidadãos. Há uma outra parte, excessiva para muitos, que é paga pelos cidadãos a quem já se obrigou a pagar taxas e impostos. Uma parte, quase metade, da população paga duas ou mais vezes pelo direito à proteção da saúde.
É obrigação do governo apresentar uma proposta de como pretende gastar as receitas que vai ter. É o orçamento do Estado, instrumento político onde cabe muita coisa, uma ferramenta essencial para a governação. O governo diz onde quer gastar o dinheiro que os cidadãos foram obrigados a confiar-lhe e estabelece limites para a despesa por áreas. Uma das áreas é a saúde, sendo que a despesa e receita em prol da saúde cabe em várias rubricas orçamentais e não apenas nas verbas alocadas ao ministério da saúde. Há medidas com impacto na saúde em muita da despesa e expetativa de receitas que se apresentam à Assembleia da República. Por exemplo, toda a política de rendimentos para funcionários públicos e pensionistas tem impactos na saúde individual e pública. O valor do rendimento mínimo de cada um tem relação matematicamente direta com o Estado de saúde das populações. Mas há mais.
Ora, o atual governo, em minoria no parlamento que tem de aprovar o orçamento, teve que ajustar as suas propostas ao que poderia ser aceitável para o segundo maior partido e, assim, assegurar a aprovação do documento. Não vale a pena estar a revisitar a novela mediática que antecedeu a inevitabilidade da aprovação do orçamento, mas interessa olhar com alguma atenção para medidas que faltam no que à proteção da saúde diz respeito.
É evidente que apesar de ter havido um esforço meritório para a redução da carga fiscal, o orçamento proposto é tímido no que diz respeito a reduções de impostos sobre rendimentos de trabalho, onde se fica por um “generoso” ajustamento de escalões no dobro da inflação prevista, e ainda está longe da dedução completa, como deveria ser, das despesas que os cidadãos que mais pagam impostos são obrigados a fazer para que a saúde das suas famílias seja protegida na medida em que o Estado não a protege. Em suma, este orçamento faz pouco para combater a dupla taxação. Por duas vias. Não é suficiente, apesar de algum aumento de dotação para o ministério da saúde, para melhorar a qualidade e cobertura dos serviços do SNS e não contraria, de forma significativa, a dupla taxação em que incorrem as famílias que recorrem a serviços não públicos. Essas famílias pagam para lá dos impostos e aliviam o SNS de trabalho. Imaginem as listas de espera se não houvesse alternativas privadas. O Estado despreza essa classe “média” que o sustenta. Este Governo, como os socialistas, melhora o salário mínimo, ainda bem, mas faz pouco para melhorar os salários líquidos da média ou acima dela e para baixar as despesas out of pocket com a saúde.
Compreendo a intenção do “IRS Jovem”. Mas não acredito nos efeitos propostos. É uma medida injusta e, digo eu, pouco efetiva. Os jovens vão continuar a emigrar para Países onde se viva melhor. E, confissão de velho, seria bem mais interessante baixar todas as percentagens de IRS, para todos os escalões. Pois é, não sou um grande adepto do nosso sistema fiscal “progressivo” em que qualquer salário, ainda que modesto, desde que ligeiramente acima da média, vergonhosamente baixa, é alvo de taxas absurdamente elevadas. Enquanto assim for não há como fixar quadros mais jovens. Nem vale a pena aumentar salários. Os impostos comem o estipêndio.
Voltemos ao orçamento para a saúde. Desde já declaro que só li as “gordas” e algumas listas que me interessaram. Não fui espiolhar os mapas anexos, de difícil legibilidade para um cidadão comum como eu. Não sei se lá consta a medida, inútil e inconsequente, um desperdício, do “cheque psicólogo”. Nem sei se lá consta alguma dotação para melhorar a remuneração base dos médicos. Se falta, é um erro monumental. Acreditar nos méritos do pagamento por produção adicional é um erro, por ser arriscado, por poder comprometer a qualidade, por não produzir melhores resultados. Mas sei que o governo está contente por não ter aumentado impostos sobre tabaco e álcool. Outro erro monumental, um atentado à saúde pública. Até conta com maior receita por aumento de consumo! Para lá de demonstrarem completo desconhecimento sobre a necessidade de reduzir a carga de doença para assegurar sustentabilidade dos sistemas de saúde, ainda tivemos de ouvir declarações infelizes, para ser suave nos adjetivos, do ministro da agricultura. Manifestamente, no que somos iguais a muitos outros Países, o governo tarda em demonstrar cultura sanitária. À saúde não dão a relevância e a força política de que as populações precisam. Acresce que o orçamento não aproveitou o articulado para fazer aprovar legislação que modificasse, para melhor, a Direção Executiva e as suas relações com as outras agências, mormente a DGS e a ACSS. Não é grave. Tardam, mas os diplomas poderão vir depois. A Senhora Ministra e a sua equipa têm feito um bom trabalho, apesar de pouca ajuda instrumental, veja-se o triste “plano de emergência”, e da falta de recursos humanos, pelo que mereceriam um orçamento melhor. O que se prevê de despesa adicional para a saúde não cobre as necessidades de investimento e, se nada de muito relevante for feito, não prevê o aumento da despesa com os medicamentos que aí vêm.
Mas há um assunto que me preocupa muito mais. Há umas semanas, neste jornal, publicou-se um artigo sobre o IPO de Lisboa. Nele relatavam-se insuficiências e carências que são reais e sentidas diariamente por trabalhadores, muito mais do que pelos doentes a quem tudo fazemos para proteger das ineficiências do Instituto. Um trabalho difícil que exige saber, resistência intelectual e física, espírito de sacrifício ímpar. Temos atrasos graves nos meios complementares de diagnóstico com imagem. Há um problema nacional, sublinho nacional, de acesso a transplantação de medula óssea, em especial se for alogénica (aquela em que o dador é uma pessoa diferente do receptor), área em que há atrasos insuportáveis e não há coordenação nacional. Na verdade, há falta de camas para tratar doenças oncológicas graves. E há atrasos no início de tratamentos médicos e de radioterapia por falta de espaço para acomodar todos os necessitados. Portugal não se preparou para a evolução tecnológica em tratamento oncológico, nem para o aumento da prevalência destas doenças. O IPO de Lisboa deveria ser, todo ele, um centro de referência e não um hospital geral de cancro. Tem de ser profundamente reformado, acrescentado e modernizado. Tem um capital de saber único, com pessoal excecional e isso é reconhecido em inquéritos de satisfação. Apesar de todos os constrangimentos temos resultados clínicos ímpares. Fomos e somos pioneiros em muita da oncologia nacional. Em suma, não há política para a oncologia em Portugal e a culpa não é do IPO de Lisboa a quem tudo tem sido mais negado do que dado.
O IPO de Lisboa aguarda há mais de 30 anos por um novo edifício. Uma saga que tem tido contornos que davam para um romance épico e, ainda, um policial. Pela segunda vez há uma planta aprovada, após concurso público, pelo que só falta lançar concurso para a construção e, depois, iniciar e terminar as obras. A primeira planta, quando se pensava ser possível construir um edifício com internamento, foi paga e deitada fora. Havendo segunda planta, resultante de um concurso efetuado sob o respaldo de Portaria do anterior governo e na sequência de aprovação do plano funcional pela ACSS e ARS LVT, cujas obrigações transitaram para a Direção Executiva, esperar-se-ia que o governo em funções tivesse o bom senso e esperteza política para transformar a prossecução do novo IPO de Lisboa num trunfo político. Não tiveram e o orçamento para 2025 é completamente omisso quanto a verbas para o novo IPO de Lisboa.
As doenças cancerosas são a segunda maior causa de morte em Portugal (aproveito para informar que a primeira – as doenças cerebrocardiovasculares — e a segunda – os cancros — são preveníveis por eliminação do tabagismo e diminuição do consumo de álcool, sendo ambos reconhecidos carcinogénios). “Nem todos teremos cancro, mas a probabilidade de termos um cancro ao longo da nossa vida, não necessariamente de morrer de cancro, já é de 1 em cada 2 homens e 1 em cada 3 mulheres. Todos os anos, dos portugueses que morrem, podemos dizer que um quarto morre por causa de cancro. A grande maioria das pessoas que morrem com cancro têm mais de 65 anos. Genericamente, o risco de ter um cancro aumenta em cerca de 3% por cada ano que passa” (1) e a população, ainda bem, está a envelhecer. As necessidades assistenciais para com os doentes oncológicos estão muitíssimo longe de estarem satisfeitas. Apesar do esforço envolvido, porventura pouco eficiente, para a redução da lista de espera cirúrgica de doentes com cancro que existia em abril de 2024, essa lista não deixou de aumentar. E o panorama para os tempos de espera de consultas, no panorama nacional, é assustador. A maioria dos seguros de saúde, que as pessoas compram para conseguirem ser atendidas em tempo útil e usufruírem de uma hotelaria condigna se precisarem de internamento, não cobrem os preços exorbitantes dos tratamentos oncológicos do século XXI. A quase totalidade dos doentes com cancro acaba no SNS e uma parte significativa destes no IPO de Lisboa.
Chegados aqui, deixo o meu apelo à AD e aos partidos da oposição para que, na discussão na generalidade do orçamento, façam inscrever a dotação plurianual necessária para que finalmente, tal como se espera que aconteça com o Hospital Oriental de Lisboa, se conclua num prazo de poucos anos o novo edifício do IPO de Lisboa. Portugal saberá agradecer o interesse dos seus representantes na Assembleia da República por este assunto que se arrasta há demasiados anos.
(1) Fernando Leal da Costa, Como Adoecem os Portugueses – saúde, estilos de vida, in Coleção “Os Portugueses”, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2020.