Recuemos ao final da primavera, início do verão de 2020. Depois de vários alertas públicos inconsequentes sobre as condições de saúde e de dignidade em que os idosos de um lar de Reguengos de Monsaraz estavam a ser tratados, uma auditoria clínica promovida pela Ordem dos Médicos deu uma nova visibilidade ao problema e acentuou a premência de uma política diferente para as instituições de apoio a idosos. Digamo-lo sem rodeios: o relatório da Ordem dos Médicos criou um facto público com consequências políticas. Consequências essas que aceleraram a vontade de alguns deputados de alterar o Estatuto das Ordens Profissionais, para garantir que passam a ter controlo político suficiente para deixarem de ser incómodas. Esta semana será votado um projeto de lei de um grupo de deputados do PS.

Publicamente invocam o corporativismo destas instituições para a urgência da mudança – um chavão que surge sempre que as intervenções das associações públicas não estão alinhadas com o poder e em que se multiplicam notícias falsas, por exemplo dizendo que a Ordem dos Médicos limita vagas para a formação especializada ou numerus clausus nas universidades, quando esses dossiers na verdade são da competência e responsabilidade do Ministério da Saúde e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, respetivamente.

A tentativa de governamentalização das Ordens surge pela mão de um grupo de deputados do Partido Socialista, que apresentou o Projeto de Lei n.º 974/XIV/3.ª, visando alterar a lei que estabelece o regime jurídico das associações públicas profissionais. O documento será esta semana votado na Assembleia da República e representa uma perigosa ingerência partidária no funcionamento das ordens profissionais. Em bom português, vende-se gato por lebre. Conquistam-se os cidadãos com o discurso público de que se vão acabar com supostas barreiras às entradas nas profissões, mas na verdade o projeto constitui um ataque direto à democracia, ao impedir que associações como a Ordem dos Médicos possam manter o seu papel público cimeiro de intervenção na defesa dos interesses dos doentes.

Se assim não fosse, porque quereria este grupo de deputados passar a nomear por indicação política representantes para todos os órgãos das Ordens, até em número superior aos profissionais de cada classe? De destacar que, no caso da Ordem dos Médicos, essas pessoas externas terão acesso e poder de decisão sobre informação clínica protegida dos doentes, seja no designado órgão de supervisão, seja num conselho disciplinar de âmbito nacional. A título de exemplo, o projeto quer criar um Provedor do Cliente, com funções inusitadamente alargadas, num modelo distinto do que acontece noutros setores, e em que será uma direção geral de um ministério do Governo a indicar três nomes alternativos para o cargo, aos quais a Ordem se terá de cingir e que terá de remunerar com o dinheiro dos seus associados.

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Com esta crítica não queremos dizer que está tudo bem ou que somos contra adaptações a novas realidades. Mas estranhamos muita coisa. A Ordem todos os anos entrega os seus Relatórios de Atividades e de Contas às autoridades competentes, nas quais se inclui o Governo. A Ordem tem as portas abertas a todas as instituições inspetivas, como é o caso do Tribunal de Contas e da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde. A fiscalização da nossa atividade pode ser sempre realizada em qualquer altura. E aceitamos sugestões e recomendações de melhoria, como de resto já aconteceu. Nunca os senhores deputados se pronunciaram antes sobre estes documentos, reagindo diretamente aos relatórios que lhes apresentamos.

Mais, quando foi altura de reconhecer que os conselhos disciplinares poderiam funcionar melhor, promovemos um plano de ação que reforçou a sua capacidade de resposta, cito a título de exemplo. Mas, se os deputados estão mesmo tão preocupados em ter um Provedor independente, porque querem uma pessoa indicada pelo Governo? E porque é que nunca responderam à Ordem dos Médicos quando na sessão legislativa passada tomámos nós a iniciativa de propor algumas mudanças? A maior prova do nosso interesse em servir melhor os nossos doentes e envolver a sociedade civil – além de tudo o que ficou à vista com a qualidade e dedicação demonstrada pelos médicos na pandemia – são as propostas que apresentámos à Assembleia da República. Nessas propostas que, reforço, nunca obtiveram resposta, constava a criação da figura do Provedor da Saúde e a inclusão de um magistrado no Conselho Superior da Ordem dos Médicos, designados respetivamente pela Ordem dos Médicos e pelo Conselho Superior de Magistratura, solução muito diferente da partidarização agora inscrita. Este magistrado acompanharia o trabalho dos 15 médicos das diferentes regiões que integram o Conselho Superior.

Uma coisa é mudar, outra é aceitar um projeto de lei que é uma verdadeira armadilha para os cidadãos. Um projeto de lei que, incompreensivelmente, nasce pelas mãos de quem reclama a “paternidade” do Serviço Nacional de Saúde, mas que nem sequer sabe cuidar dele. O Governo não tem a humildade de reconhecer e ouvir quem pensa de forma diferente, quem tenta contribuir de forma independente, nem tolera a autonomia e a liberdade das Ordens Profissionais. Fica inquieto. E quer amordaçá-las, tal como já o fez com outras instituições do nosso país. As Ordens são independentes em termos sociais e económicos. Não dependem do Governo. Não têm que ser subservientes. Não têm que mendigar uns euros para exercerem as suas funções de pleno direito. Não dependem de partidos políticos. Não dependem do poder económico.

Rejeitamos também a associação propagandística que está a ser feita entre a necessidade de aprovação deste projeto de lei e a libertação das verbas europeias para que Portugal possa avançar com o Plano de Recuperação e Resiliência. A democracia europeia é construída pelo seu capital humano, como ficou reforçado nesta pandemia no que aos médicos e outros profissionais de saúde diz respeito, pelo que é certamente impensável acreditar que o apoio financeiro a Portugal tenha uma mordaça como preço. E certamente não o será quando é o próprio Direito da União Europeia que define a profissão médica como uma profissão regulamentada.

A prova do nosso valor está na colaboração diária que damos aos nossos doentes e a dezenas de instituições que contam com os nossos pareceres e orientações, desde instituições na área da saúde a tribunais. A Ordem dos Médicos tem assegurado ao país uma formação médica especializada de excelência e uma medicina de qualidade – que a tutela não tem sabido aproveitar, deixando sair do SNS muito do seu capital humano.

Podem dar ordem para nos silenciar, mas não nos calaremos e vamos continuar com coragem a defender a saúde dos portugueses.