A Restauração da Independência continua ainda a escapar a muitos. É bom o feriado – mas serve mais para dia de descanso do que recordação da nossa história. Perguntando a alguns amigos sobre o que pensam acerca desta data, o que sentem sobre o Primeiro de Dezembro, a resposta mais evidente é “não penso; não sinto; para ser honesta, nem me lembro do que seja”.

Porque é que isto acontece? Por ser uma data pouco celebrada? Por ser uma data pouco valorizada? É uma data, não uma memória. Um facto passado, não uma inspiração presente. Um dado adquirido, não uma vitória conquistada.

É uma pena. E é uma pena porque celebrar o Primeiro de Dezembro, além da festa evidente da independência portuguesa, é lembrar que há traços distintos no caráter, na vocação e na identidade do povo e do país. Ou seja: celebrar o Primeiro de Dezembro é também celebrar uma visão do país que passa apenas por ser o que é ‒ português.

Embora não fosse propriamente a “anexação espanhola” o problema, a monarquia dual sob os Filipes foi-se paulatinamente desviando dos compromissos assumidos nas Cortes de Tomar. O reinado do nosso D. Filipe III, em particular, marcou uma rutura em relação aos traços gerais de orientação do reino.

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O império dos Habsburgo era essencialmente continental. Não obstante as colónias na América e na Ásia, era na Europa, nos seus conflitos político-religiosos, nas suas manobras diplomáticas e dinásticas e nas revoltas que os Reis de Espanha concentravam a sua atenção e a maioria dos seus recursos. Assim sendo, as imposições do Conde-Duque de Olivares sobre os recursos e homens de Portugal foram, em grande medida, ao serviço das necessidades continentais do Império Habsburgo.

Nós éramos um império marítimo ‒ o palavrão é talassocrático ‒ de vocação atlântica. A prioridade era a manutenção e expansão dos interesses do Reino pelo resto do mundo. A nossa grande força era a Marinha, que garantia a ligação e segurança dos vários territórios da Coroa no mundo. Assim, a reorientação estratégica do Mar para a Terra não servia os interesses portugueses e desviava recursos para a Europa continental.

Ao mesmo tempo, a centralização feita pelo Conde-Duque desviava-se dos direitos e privilégios que Filipe I tinha dado para acalmar o reino que ele “herdou, comprou e conquistou”. Por isso, não é surpresa que as cidades, vilas e territórios portugueses tenham apoiado rapidamente D. João IV. O rei aclamado era visto como tendo legitimidade histórica e dinástica para ocupar o trono, mesmo tendo lá chegado por meio de um golpe palaciano.

Mas a união das coroas era a oportunidade perfeita não só para a consolidação do domínio Habsburgo da península, como para uma harmonização cultural, linguística, arquitectónica e estética.

Não deixa de ser interessante que Camões tenha aqui morrido em 1580. José Ribeiro e Castro, há quase 10 anos, lembrava que se não fosse o Primeiro de Dezembro, “Camões e ‘Os Lusíadas’ seriam talvez desconhecidos” por aqui – e “porventura este ‘aqui’ nem existiria”.

A relevância e importância da obra do Padre António Vieira é importante ser destacada. Porque era mesmo de um “Imperador da Língua Portuguesa” que o reino precisava para relevar a distinção desta língua antiga, um dos pilares para a unidade do país desde a fundação. O máginifico orador religioso teve também grande destaque na diplomacia. Sabendo da frágil situação de Portugal, D. João IV enviou várias embaixadas às principais cortes da Europa, especialmente às que eram contra os Habsburgo e à Santa Sé. O objetivo era garantir o reconhecimento internacional da nova dinastia de Bragança e a segurança que isso traria.

Tudo isto para dizer: celebrar a Restauração é celebrar muito mais do que aquele dia 1 de Dezembro de 1640. É celebrar também a vocação marítima de Portugal; é celebrar o caráter popular e local em que se sustentava a legitimidade monárquica portuguesa; é celebrar o património, as artes e as letras da cultura portuguesa e é celebrar a integração na ordem internacional moderna.

Comemorar o Primeiro de Dezembro não deve, de forma alguma, ser visto como um ato de isolacionismo ultrapassado, nostalgia histórica ou fuga dos desafios atuais. Isso estaria em total contradição com os objetivos de quem devolveu a Coroa portuguesa a um português.

Vivemos tempos de desafios que vão além das fronteiras nacionais, uma cultura que se torna mais homogénea do que nunca, um período de grandes mudanças históricas e de reorganização da ordem mundial. Assim foi no passado, assim é agora.

Celebrar a Restauração pode recentrar-nos nas marcas duradouras da nossa identidade e património, enquanto reinterpretamos o passado para entender os sinais que o presente nos dá sobre o futuro. É uma oportunidade para procurar na memória histórica de um povo os exemplos ‒ bons e maus ‒, as virtudes e os erros, os heróis e os vilões de uma geração que arriscou tudo para tomar as rédeas do seu próprio destino. Pode, resumidamente, ajudar a compreender e resolver os problemas que o país enfrenta (muito para além do horizonte de um noticiário).

Celebrar o Primeiro de Dezembro é celebrar o que nos marca. É celebrar que somos, orgulhosamente, nós.