A frase que está no título deste artigo tem dois problemas: não é verdadeira e estigmatiza os portugueses de uma região do país. Há anedotas que escarnecem os alentejanos de todas as formas e feitios, desde andarem de mota com uma almofada para fazerem as curvas deitados até às que dizem que os alentejanos, à segunda-feira, saem pela janela porque têm uma semana de trabalho à porta. As mesmas são repetidas no café, em tertúlias de amigos, em reuniões familiares. Se fossem ditas no Parlamento, ninguém tem dúvidas que André Ventura ia insurgir-se. E, seria mais certo ainda, que José Pedro Aguiar-Branco iria repreender verbalmente o deputado que proclamasse tamanha e ofensiva inverdade.
O líder do Chega, meio pela graça, meio pela provocação, decidiu dizer o seguinte dos turcos: “O aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos. Os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”. A frase tem uma coisa em comum com a que titula este artigo: é mentirosa. Um estudo da OCDE, já amplamente divulgado, mostra que os turcos trabalham mais horas do que, imagine-se, os portugueses. Estão em 13º lugar, enquanto Portugal está em 20º, sete lugares abaixo. Em matéria de produtividade, Ventura dá uma ajuda: construiram um colossal aeroporto em cinco anos. Estamos esclarecidos quanto ao valor factual da frase, vamos à legitimidade de a dizer no hemiciclo em dois planos: o jurídico e o político.
No plano jurídico, parece ser bastante claro: o 157º da Constituição que diz que “os deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções.” É possível ainda invocar juristas insuspeitos de nutrirem qualquer simpatia por André Ventura para o sustentar. A coordenadora do PS na comissão de Assuntos Constitucionais, Isabel Moreira, defendia em 2018 — a propósito do boicote a Marine Le Pen na Web Summit desse ano, que a Constituição “não proíbe a expressão individual do pensamento racista”, pois tal “proibição significaria que a nossa lei fundamental teria continuado a censura do regime anterior”.
Leonor Caldeira — que defendeu a família Coxi num processo que acabou na condenação de André Ventura — também remeteu a sua posição sobre o caso para o artigo 89.º do Regimento da AR, que diz que “o orador é advertido pelo presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”. A nuance, explica a jurista, é que a definição se é ofensivo ou não parte de uma interpretação subjetiva de Aguiar-Branco. Pela dureza da lei é assim: se para Aguiar-Branco não é ofensivo, a intervenção de Ventura sobre os turcos não é, para efeitos regimentais, ofensiva. Ou seja: do ponto de vista jurídico, é claro: Ventura podia dizer o que disse e Aguiar-Branco não lhe devia ter retirado a palavra.
São, por isso, pleonásticas e ineficazes movimentações subsequentes de José Pedro Aguiar-Branco como ouvir os antigos presidentes do Tribunal Constitucional. Essa proposta caiu entretanto por oposição da esquerda, mas seria profundamente redundante. O que, provavelmente, todos (ou a maioria) lhe diriam é que fez bem em não tirar a palavra a André Ventura. O presidente da Assembleia da República ia procurar a razão no plano que já tem: o jurídico.
Há, no entanto, o lado político. José Pedro Aguiar-Branco até foi eficaz na parte de não comprar um conflito estéril com André Ventura, mostrando mais inteligência emocional e política do que os seus dois antecessores, Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva. O presidente da AR tinha o dever jurídico de não interromper Ventura, mas tinha o dever político, como segunda figura do Estado, de dizer no fim da intervenção do líder do Chega que a instituição que representa não se revê numa consideração coletiva falsa e potencialmente xenófoba dirigida a um povo. Por hipótese, o Parlamento e o Estado português mereciam que, no momento em que a imprensa turca referisse (como aqui) que houve um deputado português que ofendeu os turcos, a notícia pudesse incluir declarações do representante da casa que representa o povo português a dizer que não se revia nas palavras e criticava o ato. O que não aconteceu.
Sem emenda, o soneto não ficou melhor. O maior desacerto foi quando Alexandra Leitão perguntou diretamente ao presidente da AR sobre se um dia uma “determinada bancada disser que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode”. Aguiar-Branco, do alto do púlpito, foi imperativo: “Pode. No meu entender, pode”. Faltou o resto. Faltou dizer que pode, mas não deve. Que os deputados devem respeitar os outros povos e evitar esse tipo de expressões no palco democrático por excelência. O presidente do Parlamento também é um moderador, apaziguador e um garante da credibilidade do Parlamento. Chamar a atenção de um deputado nestas circunstâncias não o transformaria em polícia da palavra, nem censor, nem um inquisidor. Censura é uma coisa, pedagogia é outra.
Aguiar-Branco tinha, até este momento, evitado confrontos prescindíveis. Isso levou a comentários nos bastidores parlamentares de que o PS — já sem o seu favorito à segunda metade do mandato de presidente da AR, Francisco Assis — podia deixar o atual presidente do Parlamento continuar em funções caso ocorra a conjugação cósmica da legislatura durar quatro anos. Outros ainda, mais sonhadores e deslumbrados com o exercício de Aguiar-Branco, viam no presidente da AR um potencial candidato presidencial à direita. Nada disto caiu por terra. Mas o presidente da AR comprou uma guerra desnecessária com a esquerda, que viu nesta uma oportunidade para começar a desgastar Aguiar-Branco. Já o Chega não passou a ser um aliado e, basta Ventura considerar que isso lhe trará ganhos de circunstância, e começará a testar os limites do presidente da AR. E aí não haverá boas saídas para Aguiar-Branco: ou permite e caem-lhe as outras bancadas novamente em cima; ou não permite e o Chega acusa-o de ceder ao wokismo ou outro ismo qualquer.
O presidente da AR dizia ao Observador no dia em que começou a votação para o cargo que não queria ser “protagonista”, mas a insistência em provar a sua razão jurídica fê-lo descurar a sua sensibilidade política. Tornou-se personagem principal e vai ter de enfrentar uma conferência de líderes que, no fundo, é uma espécie de avaliação à sua conduta futura. Quando, até aqui, do ponto de vista regimental e político, tudo dependia da sua interpretação, Aguiar-Branco provocou uma situação em que outros vão discutir o que ele pode ou não aceitar. Com mais bom-senso e equilíbrio podia ter evitado. Deixava o líder Chega falar, mas repreendia-o politicamente. Com a palavra — a maior arma parlamentar.
O ponto agora não é se, mas quando haverá nova polémica semântico-constitucional no Parlamento. Isto porque se há coisa que André Ventura nunca deixará de ser é vocal e provocador, o que faz parte do seu core político. Talvez o líder do Chega até o faça para defender essa gente trabalhadora, os alentejanos que, obviamente, trabalham muito. Os turcos também.