Para qualquer lado que se olhe há greves no Estado. Greves de professores que perturbam a aprendizagem e a avaliação dos alunos bem como a vida dos pais, greves de oficiais de justiça que paralisam o funcionamento dos tribunais, greves de funcionários da CP, que transtornam a vida laboral dos que comutam entre a casa e o trabalho. As greves são um resultado de duas coisas distintas. De uma insatisfação profissional, frequentemente ligada a questões salariais, e de uma estratégia política, sobretudo de sindicatos mais afetos ao PCP e à CGTP que agora competem com sindicatos independentes.
Enquanto isto, Fernando Medina prepara-se para mais um brilharete orçamental este ano. Fechou o ano de 2022 com um défice significativamente melhor que o previsto (de 0,4% em vez de 1,9% do PIB como orçamentado). Em 2023 poderia fechar com um saldo orçamental muito melhor que o previsto no OE2023. Em vez de um défice orçamental de 0,9% do PIB poderia registar, sem medidas extraordinárias, um excedente orçamental da ordem dos 1,9% do PIB. Essa folga face aos objetivos orçamentais permitiu que o governo tomasse uma série de medidas extraordinárias: medidas de apoio às famílias vulneráveis e relacionadas com a habitação, IVA zero nalguns bens alimentares essenciais, aumento extraordinário de trabalhadores da administração pública e do subsídio de refeição e, por fim, um adicional às pensões em pagamento. O governo considera que estas medidas extraordinárias terão um impacto de 1% do PIB. Resumindo, com a informação que dispomos agora e uns cálculos adicionais, tudo indica que poderemos ter um excedente de 0,9% do PIB em vez de um défice do mesmo montante como anunciado pelo governo.
O renovado brilharete nas finanças públicas deste ano resultará essencialmente de três coisas: de uma previsão atual de um crescimento económico nominal superior ao previsto no OE2023, de uma já de si subestimada receita fiscal e contributiva no OE2023 e do já aludido brilharete nas finanças públicas de 2022. As medidas extraordinárias atenuam, mas não eliminam o brilharete.
Está fora de questão que as “contas certas” – cumprir o orçamentado numa trajetória coerente de consolidação orçamental – são importantes. Pelo contributo para a sustentabilidade das finanças públicas, a reputação financeira do país e a consequente poupança de milhares de milhões de euros em juros da dívida pública. Porém, os “brilharetes orçamentais” – resultados melhores que o orçamentado – são injustos e indesejáveis. Para se perceber porquê é necessário dar um passo atrás e responder à questão: qual a trajetória de redução da dívida publica que deveremos almejar nos próximos anos? Isto remete quer para questões de justiça intergeracional, quer para regras orçamentais europeias.
O tópico da justiça intergeracional é extremamente complexo. De qualquer modo podemos verificar que as coortes que estão no mercado de trabalho desde 2007, ou seja que têm atualmente cerca de 32 anos ou mais, viveram a crise financeira com impacto entre nós em 2009, a bancarrota de 2011 e a austeridade do período da troika (2011-2014), bem como a crise associada à pandemia (2020-21). Com subidas e descidas o que é certo é que chegámos a 2022 com um peso excessivo da dívida pública (110,8% do PIB) e que deveremos reduzi-la nos próximos anos para convergir para o valor de referência europeu (60% do PIB). Fazê-lo mais depressa, ou seja com “brilharetes orçamentais” associados a uma maior carga fiscal que necessária ou a uma menor despesa em serviços públicos do que o desejável, significa onerar sobretudo as gerações presentes já fustigadas pelas crises anteriores. Não reduzir aquele rácio comportaria um risco para a sustentabilidade das finanças públicas e, já agora, violaria as regras europeias. Daqui que a questão financeira essencial de política orçamental de médio prazo seja saber qual o esforço adequado que as gerações presentes deverão fazer para reduzir a dívida pública. Se for uma redução média de 2,5 pontos percentuais (p.p.) ao ano atingiríamos o objetivo dos 60% do PIB em 20 anos o que significa que o impacto deste ajustamento seria sobretudo sobre os que estão no mercado de trabalho nos próximos 20 anos. Se for bem maior (4 p.p. ao ano), ele far-se-ia sentir apenas nos próximos 12,5 anos, mas com maior intensidade. Há, assim, várias respostas possíveis à questão que formulei anteriormente. Elas não divergem por razões técnicas, mas sim por existirem diferentes conceções de justiça intergeracional. Tendo em conta as três crises vividas nos últimos 15 anos, parece-me mais justo espraiar a redução do peso da dívida por um prazo mais longo. Mesmo do ponto de vista da política económica é mais desejável e não nos trará problemas nem a nível europeu nem a nível da credibilidade financeira do país nos mercados internacionais pois o que é essencial é a trajetória decrescente do peso da dívida no produto. Registe-se que o governo quer fazer não um, mas dois brilharetes orçamentais. O primeiro, para a legislatura, está inscrito no Programa de Estabilidade (PE 2023-27) e consiste em reduzir até 2026 o peso da dívida a uma média de 4,6 p.p. do PIB ao ano. Ou seja, mais ambicioso que o mais exigente cenário que referimos acima (dos 12,5 anos). O segundo, para 2023 é obter um excedente orçamental em vez de um défice.
Os brilharetes orçamentais, nos saldos orçamentais e na dívida pública fazem mal à saúde do país pois têm vários inconvenientes: oneram em demasia as gerações presentes, aumentam a conflitualidade social e impedem ou dificultam sobremaneira quer o alívio fiscal, quer a melhoria dos serviços públicos. Contas certas sim, mas non troppo.
PS: Não se deduza, prematuramente, pela forma como está construído o artigo que considero que as revindicações salariais devem ser satisfeitas (nem se deduza o seu contrário). As alternativas a realizar brilharetes orçamentais e as suas implicações económicas e sociais serão desenvolvidas em próximo artigo (25 Junho).