À minha Mãe
(1929-2021)

Há uma história por fazer de uma pequena escolinha criada em Lisboa nos idos de 50 e que durou até ao final dos anos 60 e de uma geração que a criou e que aos poucos vai desaparecendo. Chamava-se “Os Castores” (1954-68) e a sua última morada foi bem no centro de Lisboa. Começou com 7 alunos do pré-escolar em 1956 e em 1961-62 tinha já 73 também da primária (hoje 1º ciclo). Foi criada por um pequeno grupo de quatro mulheres casadas e cada uma com um filho. As empreendedoras práticas do projeto, e digo “as” porque foram todas mulheres (1) não eram propriamente especialistas em pedagogia ou no que hoje se chama de “ciências da educação” e estiveram dois anos a preparar-se. Estudaram Pestalozzi, Montessori, Decroly e as então pedagogias modernas antes de se lançarem no empreendimento. Visto que havia três arquitetos, no grupo dos maridos, eles próprios desenharam as mesas e cadeiras.

Depressa se alargou o grupo de casais a outros, na sua esmagadora maioria católicos progressistas pois acreditavam que era possível um método educativo diferente do praticado nas escolas públicas e uma educação religiosa mais apropriada que a que se ministrava nos colégios religiosos. Eram em grande parte de classe média e de profissões liberais (arquitectos, economistas, professoras universitárias e do ensino básico). Os sócios fundadores eram casais na casa dos trinta anos e em geral com perspetiva de ter um número considerável de filhos (1). Os princípios e valores da escola eram para além da liberdade e do respeito mútuo a competência  científica e técnica de todos os que intervinham no processo educativo. Incentivava-se não só a participação, como a formação dos pais. Pretendia-se que os alunos fossem aceites independentemente do meio social ou da capacidade económica dos pais.  Com o passa palavra, depressa a escola foi crescendo passando de Santo Amaro de Oeiras, para dois outros sítios em Lisboa até à sua morada final na Rua Poço dos Negros.

Vivia-se o tempo da ditadura e esta escolinha foi atraindo os filhos daqueles que queriam uma nova sociedade e uma nova vida e que percebiam que isso passava muito pela educação. Esta escola foi uma das pioneiras, não apenas no método de ensino, mas em oferecer para além do currículo obrigatório, música, ginástica, um ateliê de educação visual, trabalhos manuais e inglês. Havia um gabinete de Observação e Correção Psicológica e faziam-se relatórios regulares sobre cada criança com um detalhe impressionante. Eram turmas mistas, mesmo na primária (contra a orientação do Ministério) incluindo alunos portadores de deficiência no ensino normal. Inovadora, naquilo que hoje é mais habitual, ao propiciar representações de Natal e festas de carnaval.   Tinha uma carrinha para transporte dos alunos. Havia reuniões temática de pais com agenda e bibliografia para que se pudessem preparar. A primeira foi sobre “birras infantis”. A segunda sobre “educação sexual dos 3 aos 7 anos”. Como devem os pais responder a perguntas como : “de onde veem os bebés?  Como vivem dentro da mãi? (sic) Por onde saem?”.  Havia visitas de estudo a museus, aquário, jardim zoológico, ou a uma padaria. Acima de tudo, e para além do ensino existia um grau de liberdade muito considerável. Estou convencido que todos os que por lá passaram sentiram esse ambiente de liberdade e criatividade.

O projeto acabou por três tipos de razões. Talvez a mais importante, financeira, pois apresentou défices em todos os anos de que há registos, o que pôs pressão sobre os sócios. Por outro lado, as mães empreendedoras do projeto  estavam, também, cansadas de lutar contra o Ministério da Educação Nacional e a Mocidade Portuguesa. “À revelia do primeiro mantínhamos a coeducação na primária.  Contrariamente à segunda, não abríamos a escola ao sábado para pôr as meninas a fazer enxovais luxuosos para os pobrezinhos enquanto os rapazes marchassem no pátio desafinando A Portuguesa e o hino da Mocidade. Ou mudávamos a escola ou terminávamos a atividade…mas como viver sem sonhar? Fechámos a escola e continuámos a sonhar!”(2)

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A história de “Os Castores” merece ser feita, não apenas para registar algo marcante para uma certa elite de classe média lisboeta, mas sobretudo para perspetivar o futuro da educação pública e privada. Hoje, em democracia, com o acesso universal ao ensino podemos  estar orgulhosos de se generalizar a todas as crianças o acesso àquilo que nos anos 60 apenas uma pequena elite de colégios ou externatos privados tinha acesso. A massificação da escolaridade obrigatória pública foi um dos inegáveis sucessos da democracia, com a discriminação positiva das crianças carenciadas (na alimentação escolar por exemplo). Mas será que estamos a fazer o suficiente na escola pública para apoiar as crianças com necessidades educativas especiais? Será que existe o investimento necessário na formação de competências quer de pessoal docente quer de pessoal das atividades extra-curriculares (AEC) ? Ou será que em muitos agrupamentos temos apenas AECs para se dizer que se oferece sem a qualidade necessária? Será que o processo de descentralização da educação é também de desconcentração e reforço da autonomia das escolas? Ou é apenas uma transferência de quem paga o cheque (da eletricidade, da água, etc.) do Ministério da Educação para a autarquia, sem nenhuma autonomia adicional dos agrupamentos? Numa altura em que é forçoso mudar comportamentos para promover a descarbonização da economia, não é desejável que as autarquias implementem os autocarros escolares (elétricos), sobretudo em meios urbanos? Com tantas famílias desestruturadas por motivos de desemprego, divórcio, problemas de saúde mental, estará a existir verdadeiramente acompanhamento psicológico das crianças em dificuldades? Muito se fez, mas há muito por fazer.

É preciso continuar a sonhar! Repensar a governança e autonomia da escola pública e a formação dos professores para que seja melhor e mais inclusiva do que é hoje e dar espaço, e algum apoio, ao setor privado que pode ser o pioneiro das práticas educativas do futuro.

1) As empreendedoras foram a fundadora que inicialmente entrou com o capital de 120 contos, Teresa Almeida da C. Cabral, a futura Diretora – Ivone Leal, e as que vieram também a assumir a Direção: Tereza Carvalho e Maria Luísa Vale do Rio. Os sócios subscritores do capital inicial de “Os Castores” foram os casais: António e Ivone Leal, Sebastião e Teresa de Carvalho, Luís e Maria Amélia M. B. Pereira, Augusto e Mariana Ferreira de Almeida, Rómulo e Fernanda Esteves, Nuno Teotónio Pereira e Natália Duarte Silva, Sidónio e Lourdes Sassetti Paes, Bartolomeu Costa Cabral e Teresa C.Cabral, e finalmente Eduardo Veloso e Joana Bénard da Costa. Rapidamente se integraram outros casais amigos com os seus filhos – Helena Sacadura Cabral e Nuno Portas, Alberto e Helena Vaz da Silva, João e Eugénia Braula Reis, José e Adelaide Pinto Correia entre muitos outros. Agradeço ao João Leal, ao Gonçalo Leal; à Sofia Carvalho, à Mimi Sassetti Pais e à Luísa Teotónio Pereira os contributos orais e escritos para uma história que merece vir a ser escrita.

2) Ivone Leal: “Os Castores: um exemplo de como se passa do sonho à realidade (1954-68).