O Ministério da Justiça anunciou, faz agora um ano, a intenção de definir uma estratégia de combate à corrupção. Passados nove meses, deu à luz um documento que exige ainda muito trabalho de incubação: simples ossatura, despido de carnes, falho da concretude e da precisão de que se nutrem as estratégias legais, é mera esperança carecente de um sopro vital. Arrebitaram-se então as forças do sector, ora reivindicando, em atitude maximalista, tudo e um par de botas, com risco até de desfocar o tema, ora reconhecendo, de forma realista, que se trata de um bom começo, se não sobrevier o risco da anemia usual quando se trata deste assunto e se se introduzirem no plano ingredientes de robustecimento compagináveis com as normas constitucionais e com os princípios civilizacionais que acalentamos. Mas despontou também, de forma inédita, uma linha argumentativa de pasmar: que o desvio sistemático, a roubalheira de bens públicos, é um mito ultrapassado pela cultura de planeamento e monitorização que se instalou como legado da União Europeia. Na senda, afinal, das teses negacionistas que a diversos níveis, não só da política como também da justiça, várias figuras vêm propalando ao longo dos tempos quando se fala de corrupção e da natureza endémica e larvar que há séculos assume no tecido nacional. Só por ingenuidade ou má fé o poderão dizer e em caso algum convencerão quem tiver da história razoável conhecimento.

A natureza humana, apesar de todos os progressos científicos e tecnológicos, pouco mudou na sua essência e o optimismo antropológico que vai de Rousseau ao Padre Américo parece estar decididamente ultrapassado, pese embora continue a inspirar o sistema penal que generosamente construímos. Por outro lado, está prestes a desabar sobre nós um mar de subvenções só igualável ao aluvião de oiro e diamantes de Minas Gerais, que no século XVIII aportou a Lisboa, inundou Mafra e deixou a grande massa do povo no estado de miséria em que vegetava há séculos. E somos a mesma gente e temos as mesmas elites que até para a batalha de Alcácer-Quibir e para as da guerra da Restauração compravam cavalos cegos, víveres estragados e sangravam o orçamento com contingentes imaginários; que exibiam canudos universitários obtidos por interposta pessoa; que trapaceavam processos judiciais; que mais tarde exasperavam o esforço de três frentes de guerra em África com sobrefacturações de víveres e equipamentos; e que há trinta anos desbaratavam em superfluidades os fundos que a Comunidade Europeia nos concedia para alcançarmos adequados níveis de competitividade. E não, não lográmos ainda níveis de planeamento e fiscalização que sejam substancialmente apurados e eficazes.

No essencial continuamos como sempre, erigindo normas destinadas ao olvido, cumprindo formalismos estéreis e criando instituições anémicas de nascença ou facilmente tomadas de fatal indolência. Iludindo-nos, em suma, quando pensamos que é “só para inglês ver”, pois, salva a estreita quota dos aproveitadores, quem sofre as consequências somos todos nós. Assim, sem mecanismos de prevenção eficazes, os tradicionais desmandos proliferarão e acabarão tratados nos megaprocessos do costume, com todas as inércias e incapacidades que fomos deixando instalar, percorrendo a longa via sacra de alçapões e espartilhos de que está povoado o processo penal, até ao alcance de uma tabelar pena suspensa ou, melhor ainda, da aurora redentora de uma prescrição. Sem esquecer os dramáticos danos colaterais para a honra e prestígio dos visados, quando os factos adquirem extemporânea e indevidamente visibilidade pública e assim permanecem largo tempo, num inferno onde arde em fogo lento a presunção de inocência.

Vem isto a propósito, neste Dia Internacional contra a Corrupção, da necessidade de apelar ao Governo e ao Parlamento para que prossigam, com a urgência que parece não ter sido ainda assumida, com os trabalhos de edificação de uma estratégia coerente e robusta de combate ao fenómeno. Pelo menos para o conter a níveis decentes, pois que se avizinha uma tempestade perfeita.

Em grande maioria as propostas vertidas no documento há meses exposto à discussão pública são acertadas e merecem consagração, desde logo porque evitam fazer recair exclusivamente sobre a Justiça o que ela por si só não pode resolver. Recorte-se melhor o seu perfil, como nos casos do “ mecanismo” ou organismo encarregado da prevenção e do modelo de acordos sobre a sentença; dê-se-lhe, noutros casos, como o das medidas de direito premial, maior robustez; simplifique-se algo na bizantina arquitectura processual que fomos erigindo ao sabor dos tempos; apure-se a intervenção fiscalizadora das inspecções sectoriais, do Tribunal de Contas e da Inspecção Geral de Finanças; e indague-se, honestamente, da hipótese de conseguir compatibilizar com as exigências constitucionais a tipificação criminal do enriquecimento injustificado e a instituição de tribunais especializados para o julgamento deste tipo de criminalidade e de outra de idêntico nível de complexidade e desvalor. Mas, sobretudo, contemple-se a Justiça com dotações orçamentais adequadas, que viabilizem o conseguimento de meios humanos e materiais suficientes, preparados, actualizados, ágeis e motivados, lembrando sempre que é abissal o fosso que separa as boas intenções das muitas leis que temos da indigência da sua prática. Sem isso serão só palavras o que se vier a dizer, a triste sina nacional de muito falar e pouco fazer. Tanto mais que há que resgatar o tema do combate à corrupção dos discursos da radicalidade não democrática em que tende a cair. Desensarilhe-se, enfim, a estratégia em obra, porque ontem já era tarde.

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