“Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura”
(Nélson Rodrigues, escritor, jornalista, e cronista de costumes e futebol brasileiro 1912-1980)

São libertários de um partido chamado, vejam só, Livre, e em cuja declaração de princípios lemos pretenderem cumprir com os seus objetivos “através de um profundo processo de democratização e de maior inclusão dos cidadãos na ação e representação política”! À boleia do bolso socialista chegaram às esferas de poder. E logo colocaram as garras ditatoriais de fora, fazendo aprovar uma proposta que determina a redução em 10 km/h da velocidade máxima de circulação permitida atualmente em Lisboa (bem como a eliminação do trânsito automóvel na Avenida da Liberdade aos domingos e feriados).

Comecemos pela aprovação: uma coligação negativa contra a vontade do executivo delegado. Os vereadores sem pelouro ou orçamento, em vez de negociarem uma solução de compromisso, impões obrigações a quem gere os dinheiros públicos. Não só é feio como também parece que não será barato.

Passemos então para essas questões mais técnicas: vai mesmo custar os milhões que se fala por aí? Vai mesmo reduzir o consumo de combustível ou os níveis de poluição? Ah e tal, tem que ser estudado, e é a Câmara que o terá que fazer. A sério? Então e se os estudos mostrarem ser uma patetice? Na verdade, a vereadora do Livre, Patrícia Gonçalves, que se encontra a substituir Rui Tavares, não sabe nem quer saber. Irresponsabilidade em que é acompanhada por quem aprovou a proposta. Temos então, apenas e só, uma imposição de uma vontade. Muito democrática, portanto…

E o que acharão as pessoas disso? Para a implementação dessa medida não se prevê consulta pública, porque se trata de “uma questão técnica” – aquelas questões que simplesmente não se deram ao trabalho de estudar – dizem. Isto é, criam-se propostas sem base científica, mas que tornam desnecessário qualquer estudo para perceber que mexem com a vida das pessoas, e a estas vira-se-lhes as costas. Numa excelente e original peça da CNN levou a vereadora a viajar mais devagar que trotinetes e bicicletas, no meio de berros e buzinões, a cereja no topo do bolo: para Patrícia Gonçalves, são as pessoas que “têm de perceber que é o melhor para a vida delas”.

Louvemos portanto a existência destes pastores iluminados que sabem melhor que os estúpidos rebanhos de cidadãos o que é melhor para eles, esperando que não se tresmalhem muitas ovelhas negras, como é costume.

E porque é que isso acontece e tanta gente se revolta? Vou contar um pouco da minha experiência em gestão de espaço público numa autarquia. As coisas são feitas para as pessoas. Toda a gente se esforça, a coisa fica bonita, mas… uns dias depois lá aparecem vandalizadas. Marginais? Guerras políticas? Ou talvez algo mais profundo e… Humano.

Na área que me é próxima – ambiente e espaços verdes – não faltam casos de árvores partidas, cortadas, mortas, jardins espezinhados, flores roubadas, destruídas, sistemas de rega danificados, animais à solta, etc. São expressões de descontentamento com raízes diversas: da aversão à mudança à dificuldade de vigilância, passando pelo desinteresse e falta de identificação com o espaço. E qual a melhor forma de evitar tudo isto? Integrando as pessoas, informando-as, convidando à participação, criando sentimentos de pertença, de compromisso, ou quanto muito de tolerância. Um exemplo prático? Um pequeno espaço junto a prédios degradados e onde os moradores são rotulados de vândalos, onde o parque infantil está praticamente destruído e o lixo se acumula. Resolvemos ajardinar esse espaço, chamámos as pessoas à rua, a dar opinião, a falar com os envolvidos, a sujar as mãos para plantar árvores, flores, arbustos, pintar os muros, regar, etc. Ali? Daqui a uma semana está tudo destruído, dizia-se. Afinal, e ao contrário de zonas mais “chiques”, ao fim de um ano, o espaço continua um brinco.

Se as políticas são para as pessoas, porque não serem feitas com as pessoas? É esta a forma de fazer política, lê-se na Convenção de Aarhus (2001) (deve-se promover a informação, participação e a colaboração), lê-se na declaração de princípios do Livre. Pelo que, se calhar, não são propriamente as pessoas que “têm que perceber” algumas coisinhas básicas sobre liberdade e democracia participativa…

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