Como é sabido há um confronto de ideias entre os que defendem uma reescrita da História da escravatura e dos impérios coloniais segundo padrões politicamente correctos, e os que se lhes opõem. A esse respeito escrevi, no meu anterior artigo, que esse confronto se trava no campo da opinião pública e que, para o vencer, é necessária uma narrativa. Os woke têm-na. É, em traços gerais, uma narrativa culpabilizadora do homem branco e que enaltece e desresponsabiliza o homem negro. Para a confrontar e bater é necessária uma narrativa que, ao contrário da woke, seja historicamente informada e equilibrada, estruturalmente verdadeira e pelo menos tão convincente como ela.
Ora, pelo que se vai vendo isso tem falhado. Há uns meses Jordan Peterson perguntava-se, no contexto de uma entrevista ao Telegraph (que pode ser ouvida no YouTube), porque é que a esquerda woke se impõe e porque é que os seus adversários, que ele situa à direita, não reagem e não fazem ouvir a sua voz. O próprio Peterson deu a sua interpretação para essa estranha apatia: “A direita não tem vistas largas nem imaginação. Não tem uma história emocionante e convincente para contar aos mais jovens. E, na medida em que é escrupulosa — sim, os conservadores são conscienciosos — é fácil apanhá-la na armadilha da culpa. E os psicopatas narcisistas da esquerda radical são incrivelmente bons nesse jogo.”
Temos visto isso em muitos aspectos das chamadas guerras culturais em Portugal, mas o problema toca mais ou menos intensamente todos os países ocidentais. A direita e a esquerda moderadas estão em silêncio, encolhidas num canto, com medo de falar. Pior. Ambas assumem as culpas que a esquerda radical lhes despeja em cima da cabeça. É um erro político e é um erro histórico, e esses erros atravessam transversalmente toda a sociedade, ou seja, vão da base ao topo e tanto caem neles os cidadãos comuns como as cabeças coroadas.
No início de Julho de 2023, ao som dos aplausos da multidão que o escutava, o rei dos Países Baixos, Willem-Alexander, veio pedir desculpas públicas pelo envolvimento do seu país no tráfico transatlântico de escravos e na exploração da escravidão nas Américas. O rei disse que estava a viver intensamente esse arrependimento, que sentia o peso das palavras no seu coração e na sua alma, e lamentou que os seus antepassados não tivessem tomado atempadamente medidas contra essas violências e abusos. Não deu destaque ao facto de os Países Baixos terem abolido o tráfico de escravos há mais de dois séculos, em 1814, e o estado de escravidão em 1863, nem valorizou essas medidas, tal como o primeiro-ministro holandês Mark Rutte não as valorizara quando, no final de 2022, também apresentou o pedido de desculpa pelo envolvimento neerlandês na história da escravatura. Aqui em Portugal, ouvimos no passado o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, pedir desculpa ao Brasil pela escravatura e assumir “responsabilidades para o futuro” pela sua existência nesse território. Marcelo não fez qualquer referência aos portugueses que aboliram a escravatura antes de o Brasil o haver feito. No Reino Unido o rei Carlos III decidiu patrocinar uma investigação histórica sobre as ligações da Coroa britânica à escravatura e sobre a obtenção de proventos por essa via, e não excluiu a eventualidade de pedir desculpa e de vir a pagar reparações por esses factos. Das várias vezes em que falou sobre o assunto, o rei britânico não se referiu a Wilberforce, a Clarkson ou a qualquer um dos muitos abolicionistas britânicos, nem aos seus continuados esforços para pôr termo à escravatura tanto a nível nacional como à escala mundial.
Essas omissões são insólitas e vão contra a História. O que estas e outras cabeças coroadas ou empossadas deviam dizer, o que deviam assumir, sobretudo em Inglaterra, era o seu sentimento de satisfação por serem os sucessores dos líderes que, no século XIX, tendo-se dado conta da imoralidade e má política da escravatura e tendo interiorizado a necessidade impreterível de fazer algo contra ela, decretaram o fim do tráfico de escravos e, depois, o da própria escravidão, libertando mais de um milhão de escravos e pressionando o resto do mundo a fazer outro tanto. Em vez de se encolherem, compungidos e penitentes, estes reis e chefes de Estado deviam sentir-se orgulhosos desse aspecto da história dos seus países. E, simultaneamente, deviam perguntar às massas doutrinadas pelo wokismo quantos reinos africanos ou asiáticos haviam feito o mesmo antes dos países europeus. Essa é que é a narrativa que a direita e a esquerda moderadas deviam assumir como sua, e deviam defender e difundir.
Os descendentes dos antigos europeus e americanos não têm de pedir desculpa pela escravatura aos descendentes de povos que já a praticavam antes de terem contactado com esses ocidentais. Todos os povos, num ou noutro momento da história, praticaram a escravatura, escravizando gente de outros povos. O que é específico não é a escravatura, é a sua abolição. Ela, sim, é um momento excepcional e um gigantesco passo em frente em termos de liberdades e direitos humanos, e qualquer governante ocidental tem de sentir orgulho por esse passo em frente ter sido dado pelo Ocidente.
É certo que depois da abolição da escravatura houve, nos Estados Unidos, o Ku Klux Klan, as leis de Jim Crow, e que, em África e noutras partes do mundo colonial, se instituiu o trabalho forçado. Mas isso em nada deslustra ou anula o que antes desses tristes acontecimentos havia sido feito. Sá da Bandeira não é responsável pelo trabalho forçado que se praticou nas colónias portuguesas no final do século XIX e primeira metade do século XX, Wilberforce não pode ser condenado pela forma como os britânicos lidaram com os revoltosos de Morant Bay (Jamaica), Abraham Lincoln não é culpado pela segregação no Mississipi ou no Alabama, e os tristes exemplos podiam multiplicar-se. Foram retrocessos? Sem dúvida. Mas haverá lugar na Terra cuja história não conheça retrocessos? Quantos dos actuais países africanos que se tornaram independentes no século XX estiveram ao abrigo de terríveis desgraças e retrocessos pós-independência?
Em termos históricos os eventuais retrocessos não apagam os progressos anteriores. Podem apagar ou atenuar o seu efeito prático, mas só apagam a sua memória se nós quisermos ou deixarmos. E o que os ocidentais de agora têm é de manifestar admiração pelas pessoas que lutaram pela abolição e supressão do tráfico e da escravidão. O que os europeus de agora têm é de olhar os africanos nos olhos e explicar-lhes que foi graças a esses homens que a escravatura acabou, de outro modo ela teria continuado a ser legal e a praticar-se em África e noutras partes do mundo. Esse é um motivo de forte orgulho para qualquer governante actual, seja ele holandês, britânico, português ou natural de algum outro país da Europa Ocidental. Infelizmente, em vez disso o que vemos é esses governantes, a par de muitos cidadãos de direita e do centro-esquerda, encolhidos, silenciosos, a abdicar desta narrativa, que é verdadeira, e a enfiar até ao pescoço a carapuça que a esquerda woke lhes põe na cabeça. O que temos perante os olhos são os bem pensantes do nosso mundo de ideias correctas e de bem-estar a quererem penitenciar-se, demarcar-se, purgar-se, da violência e das ideias erradas de um distante passado.
Em suma, devido à carapuça que facilmente enfia, e ao facto de, como disse Jordan Peterson, ser conscienciosa, a direita conservadora no Ocidente sente a estranha necessidade de pedir desculpa ao mundo, em particular a África, uma necessidade que não é simétrica, pois o mundo não sente qualquer vontade de pedir desculpa aos europeus. E haveria, nisso, tanto pano para mangas! Pense-se, à laia de introdução a essa ideia de História comparada, e sem sairmos do mesmo campo analítico, no seguinte: de inícios do século XVI a meados do século XVII os europeus de Portugal, Espanha e, pontualmente, Inglaterra, terão transportado cerca de 820 mil escravos negros para as Américas. No mesmo período os piratas do noroeste de África terão capturado no mar ou nas costas da Europa Ocidental perto de 800 mil cristãos brancos — um dos quais Miguel de Cervantes —, que foram subsequentemente vendidos como escravos. Os números são, portanto, equivalentes, mas não consta que os governantes e habitantes de Marrocos, da Argélia ou da Tunísia sintam qualquer necessidade de se desculparem por esses pecados antigos.