Em meados do século passado o psicólogo norte-americano Leon Festinger desenvolveu um conceito que abarca variadíssimas situações de conflito interno que as pessoas vivenciam: a dissonância cognitiva. Através dela foi possível ao autor explicar o que se sente quando as atitudes de uma pessoa – portanto, as crenças que defende, os valores que proclama e a perspetiva que encarna perante a realidade – não são compagináveis com os seus comportamentos, ou seja, as ações visíveis. Em muitos momentos experimentamos fazer algo que contraria a visão que possuímos sobre o mundo, o que coloca em causa a credibilidade das ideias que apontamos acreditar e proteger.
A ultrapassagem desta contrariedade não é fácil, tornando-se ainda mais intrincada se formos alvo de uma maior exposição pública e elaborarmos estudos e pensamentos teóricos acerca de quais são os problemas da realidade social e como os resolver. Como nas minhas aulas da Licenciatura em Sociologia tantas vezes abordámos, a teoria, de acordo com João Ferreira de Almeida e José Madureira Pinto, contém uma função de comando que orienta toda a investigação científica produzida, outorgando-lhe um enquadramento dentro do qual o conhecimento adquire sentido. Não obstante, há mais de meio milénio que uma das maiores figuras da história, Leonardo Da Vinci, vem argumentando que a teoria sem prática não tem sentido e que a experiência é a maior de todas as sabedorias. Tal significa que o sucesso dos saberes e da coerência da ética humana depende de os atos não poderem ser inimigos da intelectualidade, antes uma extensão da mesma.
Nestes últimos dias assistimos a acusações de assédio sexual (as mais sonantes) aos sociólogos Boaventura de Sousa Santos (BSS) e Bruno Sena Martins (BSB) por várias investigadoras que tiveram oportunidade de cooperar com estes dois profissionais. Os seus testemunhos são tão claros na forma como explicitam a alegada má conduta daqueles que chegam mesmo a revelar a contradição, encarada como pouco importante por vários docentes à época dos acontecimentos, entre a qualidade do trabalho de BSS e o seu comportamento – quem não ouviu uma das suas ex-estudantes a dizer a frase que lhe transmitiram “O professor Boaventura é muito brilhante, mas infelizmente tem dessas coisas…”? Aparentemente, o machismo e o sexismo tornaram-se uma “coisa”, sem definição, abstrata, que existe no vácuo e, por isso, não tem assim tanta relevância. Já pensámos ao ponto a que chegámos quando deixamos que a sobredita genialidade de um cientista se confunda com a sua matriz de valores e repele comportamentos de respeito para com mulheres em situação de desigualdade?
Todo este caso me faz pensar sobre o lugar do sociólogo na sociedade e no modo como se afasta o ser pessoa deste mesmo lugar. No fundo, a facilidade com que a prática abandona as reivindicações da teoria. O ofício da sociologia é, por um lado, refletir sobre os espaços e as dinâmicas sociais e detetar neles os padrões que estruturam as relações e as instituições, bem como identificar todas as singularidades que tornam possíveis as criações de identidades. Este trabalho é, por outro lado, somente conseguido quando a lucidez do investigador lhe permite agir em prol de uma maior justiça no mundo. Por estes dois motivos é que se reserva aos sociólogos uma maior exigência quanto à sua capacidade de rejeitar aquilo que descobrem e identificam como sendo prejudicial à saúde social das populações, auxiliando-as a criar uma maior coesão e a viver de forma mais digna.
As produções académico-científicas do Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra serão, com certeza, tão boas quanto aquelas produzidas no Porto, em Lisboa e noutros lugares do país, orgulhando todos aqueles que se dedicam a estas áreas disciplinares; todavia, BSS e BSB demonstraram que é possível ofuscar essas virtudes recorrendo a significantes vazios no interior de metanarrativas que perdem, elas mesmas, a sua pertinência orientadora. Acusar o neoliberalismo e o racismo, como fizeram BSS e BSB, respetivamente, para branquear os seus putativos atos misóginos redunda num triplo “homicídio”: das mulheres, que se veem, uma vez mais, degradadas, destratadas e inferiorizadas; do papel do sociólogo, que sai desvirtuado e, se outrora desconhecido, agora menos valorizado; e dos próprios pesquisadores, perdendo para os rancores neoliberais que tanto afirmaram combater e, contudo, acabaram por reproduzir e intensificar.
Lamento profundamente ver o bom-nome e o insigne trabalho da Sociologia enredado nesta polémica que, uma vez mais, permitirá aos extremos da direita política cavalgar o seu ódio perante todas as convicções de esquerda, ignorando o esforço das várias ciências em construir conhecimento científico imparcial. Porém, se existem contextos em que o sociólogo adquire imprescindibilidade são estes. E não apenas através dos seus conceitos, métodos ou resultados, partes do ethos e do logos sociológicos – também com o seu self.