Nas últimas semanas publiquei aqui no Observador várias crónicas que analisam o impacto que as redes sociais podem ter nos seus utilizadores e nos seus comportamentos. Plataformas que tanto nos entusiasmaram no seu início pela capacidade de conectar pessoas e ideias a uma escala global têm, cada vez mais, revelado um lado sombrio. São vários os utilizadores que estão a ser sugados para uma espiral de interação compulsiva semelhante a padrões aditivos como os que podemos observar, v.g., no alcoolismo.
No mundo das redes sociais, não são poucos os que se sentem “embriagados” por uma ilusão de atenção e relevância, pelas notificações e pelos “gostos” recebidos. Todas estas sensações estão a ser para muitos uma antecâmara para o abismo: semelhante à sensação inicial de euforia e entusiasmo que o álcool proporciona, os novos alcoólicos procuram as redes sociais para se sentirem vivos, “importantes” e parte integrante de algo maior. A dura realidade é que, à semelhança do álcool, essa sensação é efémera e sempre seguida de uma enorme ressaca – uma ressaca digital, por assim dizer. A ansiedade de estar sempre “ligado”, o medo de perder algo importante e a pressão para manter uma imagem perfeita online (algo que obriga frequentemente à dissimulação) são apenas algumas das consequências negativas das bebedeiras digitais.
Mas não só: como os alcoólicos, que frequentemente se veem a falar sozinhos na sua suposta grandeza, também nas redes sociais, muitos acabam em quase monólogos digitais, falando para um público que é sempre o mesmo, circunscrito algoritmicamente e que, na maior parte das vezes, nem sequer escuta realmente. Num mar de informação e de estímulos é fácil alguém sentir-se importante após ter postado um comentário aparentemente perspicaz ou uma imagem inspiradora. A realidade é que a maioria das interações nas redes sociais são breves, superficiais – e unidirecionais. Álcool e redes sociais são, para muitos, formas ilusórias de preencher um vazio ou de procura de algo que falta – uma vida glamorosa, um emprego de sucesso, relevância política ou intelectual. São, também, o ponto de partida para vários – outros – vícios.
Em tempos privei com uma pessoa que bebia significativamente. Contava a quem o quisesse ouvir que tinha uma garrafa de whisky no restaurante onde diariamente almoçava. Sempre que lá ia com a mulher, os empregados estavam instruídos para o tratarem como um desconhecido, sem nunca se referirem à famosa “garrafa”. Com o tempo percebi que toda a vida dessa pessoa estava montada numa farsa. Beber um copo de vinho ou fazer uma partilha numa rede pode ser agradável, mas deixar que o álcool ou redes sociais controlem a nossa vida e sejam a âncora da nossa autoestima, é destrutivo.
Por estes dias de férias e descanso, li com gosto Klara e o Sol, de Kazuo Ishiguro, prémio Nobel da Literatura em 2017. Klara é uma “AA”, ou “amiga artificial”, uma espécie de ama de companhia turbinada, oferecida aos adolescentes “elevados” de uma sociedade distópica, algures no futuro, onde os níveis de sociabilidade estão altamente reduzidos e só os melhores, geneticamente tratados, têm acesso à excelência. Klara não é uma “AA” de última gama, é ela própria uma versão menos atualizada, mas que, fruto de uma enorme curiosidade e zelo, desenvolve um considerável poder de observação. Klara e o Sol dá-nos uma visão profunda, não propriamente dos desafios da inteligência artificial, mas sobretudo da natureza humana, na sua complexidade, paradoxos e, sobretudo, contradições e fragilidades.
Klara, apesar de ser “artificial”, é projetada para fornecer companhia emocional exibindo consistência e lealdade, algo que contrasta com a inconstância e a incoerência humanas que chegam a ser brutalmente caprichosas. Com uma escrita lenta e crua, Ishiguro mostra-nos como é a liberdade e o arbítrio intrinsecamente humanos o que nos abre o caminho para a ambivalência de ações e sentimentos, algo que não tem paralelo em máquinas que, por design, dispõem de uma racionalidade que é, contudo, paradoxalmente comovente, tal o compromisso e candura que Klara coloca na sua missão serviçal. Klara exibe características para lá do que seria expectável num androide de base computacional, chegando a experimentar felicidade e, até, uma certa agonia, ou “pathos”. Toda a sua ação resulta da boa utilização da sua enorme capacidade cognitiva? Sim, mas Klara exibe uma enorme sensibilidade – “não te escapa nada, pois não?”, dizia a gerente da loja onde foi vendida –, revelada na forma como consegue mediar a resolução de conflitos entre Rick, Josie e a sua mãe, com uma abordagem que seria difícil a um humano. A forma como Ishiguro coloca a algorítmica na gestão de sentimentos – ao ponto de nos apresentar uma Klara com sede de conhecer e que a partir da sua apurada observação desenvolve atitudes aparentemente altruístas e de procura mística (como se estivesse a desenvolver vontade própria e um desejo de transcendência) – é uma das provocações de uma obra que pode ser lida de vários pontos de vista.
No final do dia, importa recordar que não é nas redes sociais nem nas relações com objetos “inteligentes” que iremos encontrar a verdadeira conexão, o conhecimento profundo e a realização. Nada disto se encontra num ecrã ou em robots sofisticados, mas na vida real: nas relações humanas autênticas, nos trabalhos e nos empregos reais (ainda que nem sempre “fabulásticos”), nas famílias bem (ou até mal) estruturadas, e no respeito que obtemos do mundo à nossa volta.
Como é que preservamos a autenticidade e o sentido de humanidade nas relações num mundo com cada vez mais tecnologia, é esse o desafio já do tempo presente em que tantos estão tão excessivamente expostos a plataformas aditivas ou a substitutos de humanidade que tudo fazem para nos convocar e seduzir. Desafio que seguramente permanecerá num tempo futuro que hoje se nos apresenta com contornos de distopia.
Vale mesmo a pena pensarmos nisto.