Imagino-a acordando pelas sete e meia. O namorado (não são casados) já está pronto. Acaba de vestir a pequena Fiona, que conta ao padrasto uma peripécia do dia anterior.

Cabelo desalinhado, dirige-se à casa-de-banho e dá uma longa mijada. Fica por ali ouvindo ao fundo a filha e o companheiro (é assim que o apresenta), e desfrutando o calorzinho vindo do aquecedor na parede, enquanto passa em revista os likes e tweets que aconteceram durante a noite: ainda o Brexit, ainda o Trump. Limpa-se com uma folha de papel higiénico colorido que descobriu numa fabulosa loja online de coisas inúteis ao preço de uma dezena de refeições para os sem-abrigo, e lá vai ela, meia-nua, deslizando pelo corredor até à cozinha, que dá para o jardim e de onde consegue ver o apartamento dos italianos.

Na noite anterior, os italianos (que são mais que as mães, a partilhar o mesmo apartamento) deram uma festa tardia. Apenas um, com dois empregos, está já acordado. Toma uma bucha rápida antes de ir de bicicleta até ao lado oposto da cidade, onde vai passar meio dia a desenhar corações e flores em chávenas de café pelo salário mínimo.

Imagino-a olhando para o dia cinzento e frio nascendo lá fora, enquanto saboreia o seu capuccino instantâneo, tentando decidir o que fazer ao maldito shed [1] onde o Andrew guarda aquelas ferramentas de jardinagem que nunca usa. Anda há semanas naquela dúvida existencial. E se fizesse um barbecue? Podia convidar os colegas e discutir os males do mundo em roda de prosecco e ecepipes. Ou então cobrir tudo a parquet e plantar só um chapéu de sol e uma mesa. Mas uma casa precisa de flores. O mundo precisa de flores. Também podiam contratar um jardineiro, agora que estão livres das 1200 libras por mês para a childminder [2].

O Andrew e a Fiona despedem-se com um beijinho. E eu imagino-a a tomar um duche longo e quente, saindo de casa já pelas nove, para ir de bicicleta até um deli [3] não muito longe dali. O empregado do deli é um bêbedo neto de um prémio Nobel. É rezingão mas competente. Ele e ela já trocaram uma ou duas ideias sobre Deus e Dawkins e ela contara-lhe como entrara em Olaria numa Universidade de Leeds mas acabara por cursar economia na LSE [4] — por vontade da tia, que fez questão de lhe pagar o curso.

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Imagino-a ao balcão do deli a pedir um latte [5] e, como todos os dias dos últimos três anos, desde que foi dispensada do jornal, imagino-a sentando-se depois à janela, virada para a rua. E são quase dez horas, precisa trabalhar.

Abre o laptop. Tem uma ideiazinha para um artigo sobre o Morrissey [6]. Há-de começar como todos os artigos recentes sobre o Morrissey: vai escrever sobre como era uma adolescente desajustada crescendo no Cu-de-judas-shire e como as canções do Morrissey e dos seus The Smiths lhe deram esperança e mais não sei o quê; vai contar como, por causa do Morrissey, beijou uma amiga que lhe segredou a letra de Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me [7] na casa  de banho da discoteca. Vai, depois, puxar a si os galões de vinte anos (muito bem) paga para escrever artigos sobre a genialidade de livros, filmes e obras de arte que aprendeu a apreciar por causa do Morrissey. Para escrever depois, indignada, que Morrissey — ele próprio filho de emigrantes irlandeses e um expatriado vivendo agora em Los Angeles — o Morrissey que sempre foi vegetariano, que sempre defendeu os desajustados e as causas das minorias, não tem o direito de aparecer num concerto com uma t-shirt onde se pode ler “Fuck The Guardian” (“Que se foda o The Guardian”). Não o The Guardian, que sempre defendeu os desajustados e as causas das minorias. Não o jornal onde ela tem amigos e para o qual sempre quis escrever.

Lá fora, os imigrantes que ela (e os seus amigos do The Guardian) tão apaixonadamente defendem, não entram no gastro [8] onde aos domingos ela e o Andy e a pequena Fiona vão comer o seu sunday roast com amigos e discutir os males do mundo. Não, esses esganam-se a semana toda para fazer as quinhentas libras que pagam por um quarto num shed como o do Andy. Quinhentas libras!: é o que ela vai gastar dali a dois dias num candeeiro que viu numa lojinha adorável em Ladbroke Grove e que anda a namorar há uns bons tempos.

São dez e um quarto e ela ainda não escreveu uma linha. Tem uma ideia para o título do artigo que deve entregar hoje até ao fim do dia. É um trocadilho com a canção mais emblemática desse “porco fascista” (como agora lhe chama) do Morrissey. É uma ideia genial, pensa ela. Tal como o Morrissey, sempre teve jeito para as palavras. Sempre lhe disseram isso. Sim, precisa voltar à escrita. A escrita a sério.

Imagino-a naquele deli, olhos no ecrã, vasculhando aquela pasta dos projectos sempre, sempre adiados e relendo uns parágrafos de um velho documento datado de 2016 (ano em que o jornal não renovou o contrato e passou a colaboradora). É uma coisa sobre uma mulher afegã vítima de mutilação genital que acaba por emigrar para Londres e fazer limpezas na casa duma jornalista freelancer. É baseado na história verídica duma rapariga afegã vítima de mutilação genital que fazia limpezas na casa do lado, quando ela estava grávida da pequena Fiona. Ela e a rapariga afegã trocaram umas palavras, uma vez, quando os italianos não deixaram o caixote do lixo lá fora e os empregados do council [9] se recusaram a despejá-lo porque a lei é clara: é preciso deixar os caixotes no passeio, sob pena dos empregados do council não os despejarem.

Sempre foi um povo mandrião, o povo italiano. Como todos os latinos, supõe ela. Não é à toa que lhes chamavam os PIGS. E esse Morrissey também nunca se dignou a escrever uma canção sobre uma mulher afegã vítima de mutilação genital. Pois, os sinais eram claros e ninguém leu os sinais: o Morrissey sempre foi um “porco fascista”. É por isso que ele apoia o Brexit.

PIGS-porco, porco-chouriço, pensa. O estômago faz beicinho. São quase onze. Já comia algo. Pede um sumo de laranja natural e uma daquelas tartes deliciosas de framboesa e manjericão. Dá mais uns dedos de conversa com o empregado. Está, obviamente, de ressaca, mas é um querido. É neto de um prémio Nobel. Poderia ser rico, se quisesse. Ou um génio, se não bebesse tanto. Quando voltar o bom tempo, vai convidá-lo para uma das festas lá em casa. Pode sempre apresentá-lo como neto de um prémio Nobel. Só espera que não se embebede. Ia ser um pouco embaraçoso para todos.

O texto sobre a rapariga afegã está bastante bom. Talvez o envie à Charlie que é agente literária no centro e ela o possa encaminhar a um ou dois editores. Quem sabe lhe dão um avanço para escrever o resto do livro? Afinal, precisa de dinheiro para resolver a porcaria do shed do Andrew. Mais dia menos dia, vai precisar do jardim em condições, para poder convidar os amigos e fazer Networking — é trabalho. A sua vida depende disso. A vida de todos. É por isso que é urgente escrever um artigo denunciando as opiniões políticas de um cantor pop.

Porque o mundo está um local mais perigoso. E ela sente-se um dos seus novos polícias.

[1] Barracão muito comum nos pátios das casas inglesas, geralmente serve de arrecadação mas por vezes utilizado como quarto extra da casa (usado para abrigar inquilinos ilegais).
[2] Cresce/ama (a preços de 2019).
[3] Delicatessen
[4] London School of Economics
[5] Café com leite vendido a cinco vezes o preço de custo.
[6] Cantor da banda inglesa The Smiths. Tem sido alvo de polémica pelo seu apoio ao Brexit e permanente guerra de palavras com o jornal britânico The Guardian.
[7] Na Noite Passada Sonhei que Alguém Me Amava (tradução do título de uma emblemática canção dos The Simths)
[8] Gastro-pub (muitos dos antigos pubs ingleses foram convertidos num híbrido que nem é pub nem é restaurante gourmet mas quer ser as duas coisas).
[9] Espécie de Junta de Freguesia.

Morrissey veste t-shirt contra o The Guardian num concerto em Los Angeles