Não haverá certamente tese que se tenha repetido tanto nas últimas duas dezenas de meses do que a ideia de que o Plano de Resolução e Resiliência se trata de uma oportunidade única para fazer de Portugal um país próspero e capaz de convergir significativamente com a restante da Europa. Não querendo recuperar a tradição do triste fado lusitano, vai-se tornando, no entanto, inevitável que tal promessa de um tão prometido futuro risonho escape por entre os dedos, acabando por ir parar ao bolso das clientelas usuais e, consequentemente, servindo de alimento para a já colossal máquina do Estado, que, à medida que cresce, vai asfixiando o cidadão comum em impostos, taxas e burocracia.

Ainda que os portugueses, na sua generalidade, tivessem essa noção, estando mais ou menos conformados, isso não impediu os mais ilustres representantes do Estado português de se socorrer do PRR para os mais diversos fins políticos. O Presidente da República, por exemplo, possivelmente com receio de ver reduzida a sua popularidade ou protagonismo, utilizou-o como um autêntico combustível da sua ação política, aproveitando qualquer oportunidade para, num tom paternalista, avisar o governo, e os portugueses no geral, já que nem a Seleção Nacional de futsal escapou, para os perigos de desperdiçar os fundos europeus. Tais avisos seriam, como expectável, inconsequentes, uma vez que, à data de tais alertas, já os fundos, na sua grande maioria, se encontravam alocados. Por outro lado, a chegada do PRR serviu também os fins propagandistas do Partido Socialista, que, havendo colocado a culpa da estagnação e mediocridade da economia portuguesa na pandemia, na grande recessão de 2008 ou até na simples existência de Pedro Passos Coelho, tem agora a possibilidade de presentear os portugueses com uma espécie de Santo Graal repleto de um elixir milagroso capaz de resolver todo e qualquer problema e realizar qualquer sonho em terras lusitanas.

É então aqui que entra António Costa Silva, recentemente nomeado ministro da Economia, e que já nos havia brindado com a sua visão estratégica de alocação dos fundos europeus: diz o Professor Costa Silva no seu relatório de visão estratégica que é imperativo apostar em tudo e o seu contrário: o interior e o litoral; o Atlântico Norte e a Ásia; os PALOP e a Europa; naquilo que é apelidado de “Jangada Atlântica”, mas que se assemelha mais ao romance de Júlio Verne. Mas o Phileas Fogg português não se contenta apenas com essa sua “Volta ao mundo em 80 dias”, fala também em transição digital, bicicletas, novas energias, defesa, portos, SNS, industrialização, floresta, qualificações, novas energias, agricultura biológica e muito mais, e, como uma criança a escrever uma carta ao Pai Natal, comunica toda esta lista com um ênfase tal como se tudo isto fosse a mais urgente prioridade. Não negando a importância de tudo isso, a verdade é que, à medida que a lista vai crescendo, é inevitável que cada uma destas coisas vá gradualmente perdendo destaque, e esse é o principal problema: quando a resolução dos vários problemas de desenvolvimento de um país passa por estratégias de planeamento do Estado central, esse mesmo desenvolvimento estará forçosamente dependente do discernimento ao definir as prioridades do país dos responsáveis por tal plano, ou, pior ainda, das suas preferências e interesses pessoais.

É do conhecimento geral que grande parte da economia, se não quase toda, envolve a tomada de escolhas, sendo também verdade que cada pessoa, por questões éticas, morais, culturais, sociais, ou até mesmo de outro tipo, tem um conjunto de prioridades acima das necessidades básicas organizada de maneira completamente diferente de todas as outras. Ora, desse modo, não seria nada além de errado considerar que qualquer um dos responsáveis do planeamento nomeados pelo governo, por muito informados e capazes que sejam e por muitos estudos que possuam nas áreas de economia e finanças públicas, não têm um conjunto de valores e prioridades próprio, provavelmente diferente do da maioria dos portugueses. Planear a intervenção do Estado ao nível que o Partido Socialista se propõe (tal como a generalidade da esquerda) implica definir um conjunto de prioridades a serem abordadas, as quais pertencem a um de dois grupos: ou se tratam de necessidades básicas do ser humano, e nesse caso é indiscutível que se trate de uma prioridade, ou, por outro lado, não passam de uma perceção sobre qual é a vontade do povo, como se duma entidade apenas se tratasse, ou seja, eternamente insuficiente no que diz respeito à satisfação de cada uma das vontades individuais dos portugueses. Na verdade, o conjunto dos comportamentos de cada indivíduo, num mercado verdadeiramente livre e concorrencial, representa infinitamente melhor o que seria a vontade comum de um povo, do que qualquer governo, por mais democraticamente eleito que tenha sido.

Ao enveredar pelo caminho do planeamento na forma como emprega os fundos europeus, o PS indica a Portugal o “Caminho para a servidão”, tornando os seus cidadãos dependentes de um Estado omnipresente, personificado por um conjunto de omniscientes do planeamento que justificam qualquer decisão que tomam, por mais ruinosa que a mesma possa parecer (vem facilmente o exemplo da TAP à cabeça), com um suposto bem comum, que é na verdade completamente diferente do que o português comum definiria como favorável para si. Enquanto isso, os fundos que poderiam servir para aliviar as pessoas e as empresas do esforço fiscal a que estão a ser sujeitos, e que se traduziria em crescimento económico real, permitindo a Portugal devolver estes fundos quando tal inevitável altura chegar, estão a ser usados para alimentar e servir uma série de clientelas e interesses instalados, assim como a atribuir os tradicionais tachos por quadros de um Partido Socialista que cada vez mais se confunde com o próprio Estado.

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