1. Homens e mulheres

Quando Larry Summers, Presidente da Universidade de Harvard, afirmou que a menor presença de mulheres nas ciências se podia dever a diferenças biológicas, o mundo académico norte-americano quase ruiu. Estávamos em 2005 e Summers, envolto em outras polémicas em torno da gestão da universidade, acabou por renunciar à sua posição, deixando uma lição importante à academia: há coisas que não se dizem. Uma lição que James Damore, autor do polémico “Google memo”, viria a repetir em 2017, desta feita no contexto empresarial.

Há coisas que não se dizem, a não ser que se tenha um enorme estatuto, como é o caso de Steven Pinker, famosíssimo psicólogo cognitivo, que saiu em defesa de Summers, destacando que existem, de facto, diferenças biológicas entre os sexos, que resultam de fatores como o papel desempenhado por hormonas e recetores hormonais no cérebro, disparidades na densidade do córtex cerebral e nos núcleos hipotalâmicos e assimetrias corticais. Em Blank Slate: The Modern Denial Of Human Nature (ainda não traduzido entre nós), de 2002, Pinker já havia escrito contra a ideia, muito veiculada nas ciências sociais, de que nascemos tabulas rasas [folhas em branco], quando, na verdade, o comportamento humano é condicionado por elementos que permeiam a nossa psicologia, sobretudo em resultado de adaptações evolutivas.

Importa destacar um aspeto fundamental desta discussão: quando os investigadores se debruçam sobre este tópico, fazem-no a partir de uma apreciação “em média”. Não estão a considerar indivíduos concretos, mas o que podemos saber dos homens e das mulheres enquanto grupo e em média. É a partir daí que podemos ter perceções tão curiosas e estimulantes como as que resultam do trabalho da psicóloga evolucionista Diana Fleischman sobre o modo como homens e mulheres reagem diferentemente a situações de repugnância (e as mulheres reagem, tendencialmente e sem surpresa, mais fortemente a situações de nojo). Muitas diferenças de comportamento têm, como Fleischman nota, razões que se ligam à procriação: as mulheres têm uma janela de oportunidade mais pequena para procriar e uma criança significa um investimento muito maior para a mulher do que para o homem.

Em virtude dessas diferenças, devemos ter cuidado com o desenho de políticas públicas, como diz Helena Cronin, filósofa feminista darwinista, que acusa muito do feminismo atual de ignorar o conhecimento científico e estar, por isso, permeado por um erro de raciocínio com consequências nefastas: ao confundir “fairness” [equidade ou justiça] com “sameness” [igualdade], muitas feministas têm defendido políticas públicas que forçam a igualdade, sem considerar as diferenças. Mas se as considerassem, percebiam que muitas situações interpretadas como discriminação ou injustiça resultam, na verdade, de homens e mulheres terem características diferentes e revelarem, por isso, interesses diferentes. Interesses diferentes, não capacidades diferentes, determinam escolhas diferentes – e, por essa razão, estabelecer, por princípio, a regra dos 50% na ocupação de lugares ou profissões, como muitas feministas fazem, é simplesmente arbitrário e contraprodutivo.

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2. As teorias do género

A confusão que se estabeleceu entre justiça e igualdade permite compreender o crescimento das chamadas teorias do género. A fundadora deste pensamento foi Simone de Beauvoir, que, na obra seminal O segundo sexo, estabeleceu a diferença entre ser mulher (sexo) e tornar-se mulher (género). Para Beauvoir, tornar-se mulher é assumir um determinado papel que a sociedade força ao sexo feminino e que não decorre das características sexuais (“o corpo não é um facto”). Trata-se de um exemplo típico de tabula rasa, em que as mulheres nasceriam sem quaisquer constrangimentos biológicos ou psicológicos e todo o comportamento que designamos habitualmente como feminino seria uma mera imposição social.

O argumento do género visava, em meados do século XX, um objetivo político claro: ficcionar “igualdade natural” para promover direitos e oportunidades sociais iguais para as mulheres. Mas o problema é que, ao longo das décadas seguintes, essa ficção linguística perdeu o seu poder metafórico e passou a ser entendida como “a realidade”. A afirmação de que as mulheres não devem ser discriminadas foi substituída pela ideia de que homens e mulheres são realmente iguais (como que intermutáveis).

Essa transformação foi reforçada pelas teorias do construtivismo social, que, a partir do argumento de que a linguagem constrói o mundo, defendem que toda a realidade é socialmente construída, pelo que tanto o género, como o sexo são uma construção social. Judith Butler, a grande teorizadora da teoria crítica do género, coloca as coisas nestes termos em Problemas de género: “Esta produção do sexo como pré-discursivo deveria ser entendida como efeito do aparato de construção cultural concebido pelo género. Ora, como deve o género ser reformulado para abranger as relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam assim a própria operação de produção discursiva?”

Embora Butler reconheça que existem diferenças biológicas, entende que não estamos condicionados por elas – como se tivéssemos uma liberdade absoluta de emancipação do corpo. Para Butler, ser-se homem, mulher ou qualquer outro género (sic) é uma questão em aberto, pelo que, na busca de identidade, nos devemos guiar pela seguinte orientação: o que a sociedade faz de nós e o que podemos fazer de nós mesmos. Afinal, o sexo que nos é atribuído quando nascemos e o género que nos ensinam a assumir não devem determinar o modo como vivemos a nossa vida. Poderíamos redesenhar o nosso género através da performatividade e, assim, criar uma nova identidade.

Os trabalhos que, nas últimas décadas, se desenvolveram em torno das ideias de Butler, e de teóricos anteriores, levaram a que uma agenda política fosse avançando no espaço público a partir dos seguintes argumentos: 1) sexo e género são conceitos socialmente construídos e por isso podem ser alvo de performatividade; 2) sendo socialmente construídos, podem ser desconstruídos por forma a acabar com uma normatividade binária; 3) sendo uma questão de performatividade, a identidade de género é individualmente decidida e cria a nova realidade desejada pelo indivíduo. Uma teoria moderna e progressista, mas que levanta muitas dificuldades.

3. Os problemas da teoria da autodeterminação

O primeiro argumento entra, desde logo, em conflito direto com o conhecimento científico de que dispomos, nomeadamente quando se afirma que o sexo é atribuído à nascença. A afirmação de que “tudo é nurture [educação, ambiente]” é tão falsa como a afirmação de que “tudo é nature [natureza]”: há um meio-termo mais razoável entre as duas posições e que é possível fundamentar academicamente como estando mais perto da verdade.

O problema do segundo argumento remete para os efeitos que a desconstrução da ideia de mulher como corpo feminino têm na própria mulher. É que é precisamente por homens e mulheres serem diferentes que são necessárias proteções legais específicas para estas, nomeadamente leis de proteção laboral em situação de gravidez. Outro aspeto relevante prende-se com a igualdade na prestação de cuidados médicos, assunto a que muitas feministas prestam especial atenção (às vezes, com razão): só quando se reconhece que são corpos diferentes, que funcionam de forma diferente e que têm exigências diferentes, se consegue garantir que os corpos femininos são abordados considerando as suas especificidades e necessidades. Recusar a existência biológica específica da mulher fragiliza a própria mulher.

Já o problema do terceiro argumento decorre do seu pressuposto hiper-individualista, que pretende sobrepor a voz individual à ciência, à sociedade, aos outros, a tudo. A ideia de que a sociedade é sempre e apenas uma fonte de opressão e, como tal, o indivíduo deve viver em permanente luta face a ela conduz à impossibilidade de se viver em conjunto, em partilha de princípios, objetivos, regras e normas comuns. Destrói o tecido social, que ganha forma num vocabulário comum, de que precisamos para viver coletivamente.

Na verdade, as sociedades liberais garantiram um mecanismo que permite a conjugação entre a liberdade individual e a necessária vivência em sociedade: a separação entre esfera pública e esfera privada, consolidada em torno de direitos individuais. De acordo com esse mecanismo, somos livres para adotarmos a performatividade que quisermos nas nossas vidas privadas, com a garantia de que mantemos os nossos direitos, nomeadamente de não-discriminação. Mas, na esfera pública, temos de abdicar dos nossos desejos individualistas e submetermo-nos a regras e vocabulários comuns – que até podem ser opressivos (quem nunca o sentiu?), mas que são necessários para que possamos ter um entendimento partilhado da verdade e instituições saudáveis. A partir do momento em que eliminamos a distinção entre esfera pública e esfera privada e queremos fazer valer as nossas vontades, desejos, sentimentos e emoções individuais, tantas vezes efémeras, no espaço público, vinculando os outros a essas vontades, desejos, sentimentos e emoções, podemos ter uma espécie de parque infantil, mas não teremos um espaço maduro onde o diálogo democrático e institucional é possível.

Há, em bom rigor, um limite a partir do qual as sociedades deixam de aceitar ser pressionadas por excentricidades individualistas, e quando atingem esse limite tendem a surgir figuras fortes para repor as verdades desafiadas. Será este o destino autofágico da democracia que Tocqueville adivinhou? “[A] democracia não só faz esquecer a cada homem os seus avós, como lhe esconde os seus descendentes e o separa dos seus contemporâneos; recondu-lo sem parar a si só e ameaça encerrá-lo enfim por inteiro na solidão do seu próprio coração.”