Celebramos em 2022 o quinquagésimo aniversário de Novas Cartas Portuguesas, um marco fundamental na história da nossa literatura. Partindo de Cartas Portuguesas, talvez escritas por uma freira de nome Mariana Alcoforado, as escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta desafiaram as formalidades literárias do seu tempo, subvertendo a noção de autoria com uma obra escrita a três mãos e desconstruindo a noção de género literário com um conjunto de textos de natureza muito diversa.

Mas foi em termos políticos que o livro teve maior impacto uma vez que procurou dar voz às mulheres e fê-lo com um tal excesso linguístico e performativo que despertou a atenção do regime, levando à abertura de um processo judicial por terem publicado um livro de “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. Nesta acusação, encontramos o elemento que animava o espírito das autoras e que consistia na exploração literária do corpo: o sexo, o desejo, o prazer, mas também a maternidade e a fragilidade física. “Ouve minha irmã: o corpo. Que só o corpo nos leva até aos outros e as palavras.”

Era a partir deste corpo, numa reivindicação que se pretendia universal, que as autoras sentiam a clausura – uma clausura que condicionava e determinava os papéis sociais que podiam desempenhar. Não espanta, por isso, que, ao escrever sobre a mulher em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir tenha começado pela biologia. “Que é uma mulher?”, perguntava a filósofa francesa. A mulher é um corpo, mas era preciso cortar o elo que ligava esse corpo biológico às expectativas sociais tradicionalmente associadas a esse corpo. Essa libertação corresponderia a uma verdadeira revolução, como dizem as autoras das Novas Cartas:

Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto.

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É possível interpretar esta urgência de libertação do corpo como parte de um caminho mais longo de emancipação biológica que está presente no pensamento moderno. O início desse caminho é simbolizado por Francis Bacon, quando afirma o poder do novo método científico sobre a natureza, prometendo uma progressiva superação de todas as limitações e dependências que ela nos impõe. A verdade que libertará seria agora a verdade científica, colocada em substituição da palavra dos Evangelhos e dos dogmas da fé. E talvez seja esta a grande metanarrativa moderna: a de que a Razão humana permitiria o controlo absoluto das condições adversas; a de que o conhecimento científico permitiria eliminar todos os nossos anseios e medos, até os da morte – como prometem os transhumanistas, que asseguram a última grande libertação.

Mas há algo de grotesco na forma que este caminho tomou. Aquela emancipação biológica traduz-se hoje não na ideia de separar o corpo biológico do papel socialmente construído, mas antes na ideia de prescindir do próprio corpo biológico como referência, num processo de emancipação absoluta e de transmutação da carne em verbo. E em última análise, o desejo de desempenhar um certo papel social passa a determinar o corpo que queremos ter. O género elimina o sexo e absolutiza-se.

O corpo e a carne, que foram tão importantes para as três Marias pensarem a condição feminina, a sua identidade, a sua clausura e a sua libertação, parecem ter desaparecido. E os dicionários têm, progressivamente, adotado esta transformação do mundo. O Cambridge Dictionary fê-lo recentemente, acrescentando à definição clássica de mulher (“ser humano adulto do sexo feminino”) a seguinte versão: “adulto que vive e se identifica como fêmea apesar de lhe ter sido dito que tinha um sexo diferente no nascimento”. (Entre nós, o Dicionário Priberam diz: “Ser humano do sexo feminino ou do género feminino”.) Paradoxalmente, a ciência torna-se o alvo a abater.

Esta redefinição levanta claras dificuldades ao feminismo. Para a jornalista Suzanne Moore, o caminho percorrido impossibilita a luta feminista: “Se não pudermos definir o que é uma mulher ou nomear essa experiência, não nos podemos organizar politicamente.” E essa definição tem de ser biológica: “Ou protegemos os direitos das mulheres como tendo fundamento no sexo ou não os protegemos de todo.” E se não estamos condenados a ser uma mera resposta biológica determinada por um processo adaptativo e evolutivo, devemos ainda assim reconhecer a dimensão fundamental que nos liga ao corpo: Sex matters, como diz a organização britânica (“And it shouldn’t take courage to say so.”).

Mas o impacto vai muito para além do feminismo. O editor político da Spiked, Brendan O’Neill, reagiu à alteração do Cambridge Dictionary recordando a função da linguagem e dos dicionários, e propondo um exercício de reflexão a partir da definição de “post-truth” presente no mesmo dicionário: uma situação de pós-verdade seria aquela “em que é mais provável que as pessoas aceitem um argumento baseado nas suas emoções e crenças do que um argumento baseado em factos.” A incapacidade de compreenderem a sua própria contradição parece simbolizar a loucura dos nossos dias.

“Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto”, disseram as autoras. Mas seria este o resultado desejado? E será possível recuar e recuperar alguma sanidade?

Em boa verdade, o problema não é apenas político. Ele não pode ser separado de um sentimento de desadaptação que marca o mundo ocidental. Os nossos corpos não foram feitos para uma vida tão sedentária, tão confortável, tão segura – acima de tudo, não foram feitos para uma vida tão digital. Não surpreendem, por isso, os sintomas individuais – de stress, ansiedade, depressão ou uma sensação de desencontro contínuo com a vida – que parecem dar forma a uma doença coletiva. Mas será possível libertarmo-nos da ilusão de emancipação biológica e recuperar a palavra que se fez carne?

Votos de um feliz Natal.

PS: A discussão em torno do tema “o que é uma mulher?” torna indispensável uma referência a Suzanne Moore, famosa colunista do The Guardian e que se afastou do jornal depois das reações de censura ao seu artigo “Women must have the right to organise. We will not be silenced”. Moore conta a sua história aqui (uma entrevista muito interessante, e de particular relevo para os diretores de informação que Maria João Avillez entrevistou recentemente e que consideram que a preocupação com as ideias woke são mera paranoia injustificada).