“Que vivas tempos interessantes!”: a maldição de suposta origem chinesa carrega um mundo de ambiguidades. Todos queremos ter vidas interessantes, mas o sentido maldito da frase invoca tempos turbulentos, incertos, de risco. Todos queremos ter vidas interessantes, mas quereremos vidas marcadas por camadas tais de complexidade e incerteza que nos tornamos incapazes de apreender adequadamente o mundo?

Um momento fundamental para os tempos interessantes que vivemos terá sido o 11 de setembro e o novo mundo que se apresentou, mas as tendências de conflitualidade, polarização e complexidade já existiam e foram-se tornando progressivamente mais evidentes nas últimas duas décadas. O espaço político complicou-se e tornou-se cada vez mais difícil acompanhar os novos movimentos, espartilhados em múltiplas reivindicações, posicionamentos, imposições. Essa complexidade manifesta-se de forma clara ao nível do vocabulário: a introdução de novas palavras, conceitos, ideias dificulta a apreensão e compreensão do real. E a dificuldade é aumentada pelo facto de a maior parte desse vocabulário vir da língua inglesa e, por isso, impor-se-nos como um objeto que se estranha na mesma medida em que se entranha. A conclusão só pode ser a de que a situação atual é um verdadeiro pé-de-demónio, como diria o senhor de Gondomar.

Felizmente, o mundo dos livros continua a ser útil para que possamos compreender o mundo e fazer a travessia entre o fumo das novas palavras, conceitos e ideias que marcam a discussão política atual. Um contributo indispensável é, para esse efeito, o guia publicado pela Guerra & Paz em março deste ano: Woke: um guia para a justiça social. Neste pequeno manual podemos introduzir-nos no mundo complexo da luta pela justiça social ou, na versão anglo-americana, tornarmo-nos woke (iluminados ou socialmente justos). Em vinte capítulos, a autora Titania McGrath permite a familiarização com conceitos tão complexos e relevantes como “patriarcado”, “ecossexualidade”, “apropriação cultural”, “androcausto”, “islamofeminismo”, “interseccionalidade”. Como a autora deixa claro, não é possível lutar por uma sociedade mais justa sem compreendermos estes conceitos, bem como as cinco ideias seguintes.

Em primeiro lugar, importa considerar que Titania McGrath se apresenta como uma poetisa feminista, radical e interseccionalista. Tal significa que o alvo de luta mais importante quando temos em vista uma sociedade justa é o patriarcado. Aqui reside o mal absoluto da sociedade atual e essa é a primeira informação fundamental que todas as mulheres devem adquirir: “Tenho palavras de sabedoria para todas as mulheres jovens. Não importa o que fazes na vida, nem o êxito que tenhas, serás sempre uma vítima do patriarcado. Compreender isso é a chave para o teu empoderamento”. Neste sentido, uma sociedade mais justa implicará criar um mundo radicalmente novo e verdadeiramente igualitário: “Só alcançaremos a verdadeira igualdade quando as mulheres forem mais valorizadas do que os homens.”

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Mas a luta contra o patriarcado é muito mais do que a luta contra uma sociedade dominada por homens. É que estes homens têm uma característica específica: são homens brancos. E, por isso, a luta contra o patriarcado é a luta contra o racismo e a brancura: “Se quisermos concretizar a utopia woke, os brancos devem expiar ou rejeitar completamente a sua brancura”, uma vez que “as pessoas brancas são indiscutivelmente privilegiadas, independentemente da sua classe, situação económica, saúde, idade, aparência ou se têm ou não todos os membros intactos”.

É nessa medida que se revela fundamental a luta interseccional. Se estranham o conceito, a autora apresenta uma definição esclarecedora: “A interseccionalidade funciona como uma rede em que os grupos marginalizados se entrecruzam em vários pontos da matriz da perseguição. Vamos pensar nisto como uma hierarquia. Por exemplo, uma mulher está oprimida, porque vivemos num sistema patriarcal, mas não tão oprimida como uma mulher hispânica, que, por sua vez, não é tão oprimida como uma lésbica hispânica, que, por sua vez, não é tão oprimida como uma lésbica transexual hispânica com herpes e assim por diante”.

A interseccionalidade reside então no reconhecimento de que 1) toda a sociedade é marcada por dinâmicas de poder e opressão, 2) há vários grupos de oprimidos, 3) só é possível alcançar justiça social se todos esses grupos se envolverem na mesma luta. Especialmente na luta contra a verdade factual, a ciência e o conhecimento. Afinal, “todo o conhecimento é uma construção patriarcal, porque foi adquirido ao longo de séculos de totalitarismo masculino”. Contra o conservador Ben Shapiro e a ideia por si repetida de que “os factos não se importam com os teus sentimentos”, McGrath não tem dúvidas em afirmar: “O oposto é que é verdadeiro. Os sentimentos não se importam com os teus factos. É assim que funciona a justiça social. Se sentes que algo é verdade, então é verdade”. De facto, “partir do princípio de que o conhecimento é mais importante do que os sentimentos é uma demonstração de tudo o que está errado na ciência moderna”.

Por último, devemos reconhecer o principal obstáculo ao sucesso da luta: a sacrossanta liberdade de expressão. Este suposto direito representa um mero escape para que os representantes do mal possam expressar ideias falsas e manipuladoras na esfera pública e deve ser combatido. A nossa missão deve passar, então, por exigir “que o Estado se comprometa mais para acabar com o ódio”, pois “o único modo de acabar com o fascismo é se a polícia puder prender as pessoas pelo que dizem e pensam.”

Os méritos pedagógicos do livro ficam, assim, claros. Mas talvez seja melhor terminar com uma referência importante: Woke: um guia para a justiça social é uma sátira política. Titania McGrath é uma personagem criada pelo comediante irlandês Andrew Doyle (será relevante dizer que se afirma de esquerda?), que tem satirizado o politicamente correto, as políticas identitárias e as reações ao Brexit. Os leitores de Doyle encontrarão neste livro uma incursão inteligente e necessária aos exageros e disparates que marcam o espaço público atual. E, para já, sem correr o risco da censura prevista na mais recente Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital. De facto, o polémico art. 6.º abre exceção à sátira e à paródia. Mas, caso fosse português, Andrew Doyle perceberia rapidamente que essa exceção foi resultado de falta de ponderação. No mundo woke que nos ameaça, “o propósito da comédia é educar as massas em questões de decoro social e sobre os limites da liberdade de expressão. Se a comédia tem demasiada graça, é pouco provável que alcance o seu objetivo.” Assim, podemos facilmente presumir que o art. 6.º terá vida curta: a exceção prevista para a sátira e a paródia tem de cair.