Certo dia, pelos finais do anos 80, ainda muito miúdo, em brincadeira com um vizinho da mesma idade e que conhecia desde sempre, resolvemos pegar num conjunto de notas de brincar que me pertenciam, e que me eram muito queridas, mais uns cartões de crédito velhos dos meus pais e umas coisas desse meu vizinho que faziam as vezes de pedras e moedas preciosas, juntámos tudo numa velha caixa de charutos e, imitando o que víramos uns dias antes num filme, enterrámo-la, dela naturalmente guardando a localização em indicações e desenhos num mapa que, apesar de improvisado, não deixava de conter o famoso X — a cruz que marca qualquer verdadeiro tesouro.
A ideia seria irmos “caçar” o dito tesouro no fim-de-semana seguinte — o vizinho apenas por lá aparecia quando estava com o pai —, pelo que nos despedimos e separámos com a brincadeira a meio. Durante a semana, no entanto, sendo eu um miúdo de 10 anos ainda de um tempo sem internet, telefones, ou sequer mais do que dois canais de TV, com aquilo na ideia, não resisti a ir espreitar o local do segredo para verificar se tudo estaria bem e antecipar mais uma vez o momento futuro em que “simularíamos” a caça, e consequente descoberta, do valioso tesouro.
Qual não foi o meu espanto, e horror, quando lá chegado descobri o buraco escavado, a caixa aberta e partida, tal como as minhas notas e cartões espalhados pelo chão, apenas não estando tudo completamente estragado e perdido porque o Verão não tinha trazido nem chuva nem particular humidade, ou sequer grande vento, naqueles dias. Das preciosidades do meu sócio nem sombra, pelo que o culpado do crime não poderia ser outro — afinal apenas nós os dois conhecíamos a localização da brincadeira. Assim foi a primeira vez que senti com todo o fulgor aquela sensação fria e cortante da pura traição — brutal, inesperada, injusta, incompreensível e inexplicável.
De regresso a casa, perante a minha perplexidade, foi-me explicado que nem toda a gente tem os mesmos valores. Que há pessoas que não têm palavra, que não cumprem “contratos”, ou que simplesmente não respeitam as coisas e os sentimentos dos outros. Lição aprendida, não voltei a confiar o que de precioso tinha a mais ninguém fora da família. Ainda assim, fui crescendo num mundo onde tal tipo de comportamentos não abundavam, sendo que muitos dos meus amigos que hoje em dia me acompanham são ainda amigos de infância e adolescência. No entanto, à medida que o tempo foi passando e o mundo dos adultos foi, a custo, abrindo as suas misteriosas portas e revelando os seus segredos, aquilo que de facto mais impressiona é a forma como a traição, a iniquidade, a aldrabice e a tal “falta de valores”, mesmo que por detrás das cortinas das janelas, escondida nos segredos dos bas-fond, ou disfarçada de falsa virtude e meias-palavras, é muito mais a regra do que a excepção.
A pouco e pouco a natureza humana revela-se, mesmo aos mais bem-intencionados, quando, esquecendo as palavras e as apregoadas intenções, nos focamos nas acções. Começando no pequeno roubo ou trapaça, passando pela mentira de ocasião, desde o pecadilho sem particular consequência até às maiores violências perpetradas contra outros seres humanos, o egoísmo, a mitomania, a raiva, a frustração, a pura maldade, tudo isso caracteriza muito daquilo que é a também a vida humana, sempre, desde o pequeno crime até ao genocídio que, a espaços e tempos, regularmente, para mal dos nossos pecados, acompanha toda a história da Humanidade.
Apostar na bondade intrínseca da Humanidade é, em boa verdade, meio caminho andado para a desilusão, algo que é certo e sabido por todos aqueles que produzem, criam, vivem, rodeados de pessoas. Seja no local de trabalho, na sala de aula, em qualquer ambiente de concorrência, numa realidade onde os recursos não são infinitos e não pode haver tudo para todos, na luta pelo que há, nem todos seguem as melhores regras e práticas, fazendo batota e tirando vantagem indevida de diversas situações. Aliás, não é difícil de notar que aquilo que melhor define uma civilização é precisamente a capacidade de, apesar dessa tendência intrinsecamente humana para a trapaça e o crime, por vezes até mesmo gratuita como no caso do meu vizinho, ser capaz de incutir um conjunto de valores que, uma vez firmemente interiorizados, se verifiquem capazes de gerar confiança entre os diferentes indivíduos adultos que a compõem — e quanto mais fortes e estabelecidos estes forem mais coesa e pacífica é a comunidade.
Já no mundo actual onde se acredita na bondade intrínseca da ciência e da regulamentação estatal assente na opinião especializada do perito especialista, precisamente porque onde não se partilham valores mas apenas pseudo-factos, surge, assim, perpétua necessidade de regulamentação estatal. Entre homens e mulheres de verdadeira “palavra” não seriam precisos papéis, isso é verdade, mas, porque até mesmo nas sociedades mais civilizadas esses homens e mulheres mais virtuosos se vêem permanentemente roubados, espoliados, enganados e magoados por uns poucos indivíduos que se aproveitam da situação, assim se inventou o notário que, pela autoridade do Estado, vem garantir o virtuoso cumprimento daquilo que se assinou. Eis, pois então, a verdadeira base do famoso contrato social: delegamos todos a autoridade no Estado porque, em sociedades complexas, altamente populosas, pejadas de desconhecidos, não há forma de podermos confiar directamente uns nos outros.
O Estado representa, desta perspectiva, simultaneamente, um avanço e uma falência da civilização. Um avanço, porque apenas numa sociedade altamente civilizada e organizada se geram as práticas e as instituições, como as estatais, que em perpetuidade se revelam capazes de garantir o cumprimento dos diversos compromissos assumidos. Uma falência, porque numa sociedade em que os valores que regem a comunidade estivessem verdadeiramente enraizados na cultura e na consciência dos cidadãos, em última análise, o Estado tornar-se-ia redundante: cada cidadão honraria por imperativo de consciência própria os contratos que havia assinado.
Assim, vislumbra-se aqui uma certa tendência: quanto mais civilizada, virtuosa, correcta e educada em bons valores for uma sociedade, menos necessário será o Estado. Pelo contrário, quanto mais aquela for desorganizada, trapaceira, não-merecedora de confiança, mais necessário se torna que a comunidade encontre mecanismos de coerção para forçar a ordem, o cumprimento pelas regras e o funcionamento geral da sociedade.
É preciso ver ainda que, independentemente do nível de organização estatal que uma comunidade decida adoptar, dar a volta ao sistema é sempre possível, mesmo nos mais regulados, fiscalizados e controlados deles todos, desde logo pelos próprios cidadãos encarregues de fiscalizar e implementar o sistema, um conjunto de indivíduos tão dados à trapaça e ao interesse próprio como outros quaisquer.
Desse modo, onde os valores que ligam a comunidade falharem apenas subsistirá uma intrínseca necessidade de continuamente legislar e coagir, isto para que sempre essas inovações legislativas sejam constantemente pervertidas por todos aqueles que, não se sentindo de outro modo obrigados, constante inovam, assim inventando novas formas de ludibriar o sistema em proveito próprio. Deste modo, enquanto que a uma sociedade composta por cidadãos que partilhem um conjunto de valores comum, e que por este se sintam obrigados a um código de conduta partilhado, bastam poucas leis, porque a confiança abundará naturalmente por entre a comunidade, já a uma outra sociedade onde nada ligue uns aos outros, sobra necessariamente apenas uma espiral infinita de regulamentado controlo estatal crescentemente implementado rumo, no final, ao objectivo de conter e controlar os mais elementos mais recalcitrantes da comunidade — ou seja, o nível de controlo social terá de ser correspondente ao maior nível de ameaça à sociedade, sofrendo todos os cidadãos, sejam eles cumpridores ou não, a repressão estatal por igual.
Assim se vê como todo o linguarajar da ordem liberal contemporânea perverte, por si próprio, o ideal de “menos e melhor Estado”. Hoje, em busca da sociedade “inclusiva”, “justa” e “igualitária”, garantista do “safe space”, o Estado extrapola em muito as funções de regulação contratual para passar a usurpar à própria sociedade a responsabilidade para regular moralmente a comunidade, impondo novos valores que que a minoria que controla o Estado e as redações entendem como sendo a “boa sociedade”. Isto naturalmente revela o paradoxo da bondade libertadora do liberalismo contemporâneo quando relembramos a tendência que atrás mencionei: quanto mais o Estado é chamado a impor a virtude na sociedade, por definição, mais essa virtude imposta pelo Estado está distante dos valores da própria sociedade, pois que se esses valores que o Estado agora impõe fossem valores naturalmente aceites pela sociedade, então não haveria necessidade do Estado os impor sequer, eles já lá estariam. Assim se revela a verdadeira essência do autoritarismo liberal contemporâneo: quando pretende transformar os valores da sociedade ao invés de simplesmente se limitar a respeitá-los e neutralmente os reflectir.
Infelizmente, ao contrário dos liberais modernos, que com o seu optimismo se contentaram a imaginar a base da sociedade como estando na pseudo-racionalidade de cada indivíduo — idealizado como sendo naturalmente racional e bom —, uma crença que, em termos de valores, mais não significou do que um vazio, já os inimigos da sociedade aberta cedo perceberam que o seu sonho do “admirável mundo novo” requeria uma nova e, para eles, não menos admirável interpretação moral do mundo — um interpretação que, pressurosamente, desde a academia até à redação, e dali para a TV, o cinema, e agora a culminar na repartição estatal, todos em uníssono e enjoativo coro, não se cansam de repetir.
Para quem queira olhar, a nova ordem moral aí está em todo o seu esplendor: o materialismo igualitário, em tudo vertido, desde a economia até às mais íntimas componentes dos indivíduos — raça, género, questões sexuais e de costumes — e traduzido em noções de “justiça social” que, precisamente por não representarem de todo a realidade dos valores perfilhados pelas comunidades Ocidentais, força agora à acção política, ao controlo e manipulação dos conteúdos escolares, à infindável propaganda mediática, aos subsídios e às acções de formação e “sensibilização”, tudo para as re-educar — para o nosso bem, claro.
Em poucos anos, numa sociedade crescentemente dividida, atomizada, individualizada e unida apenas no virtual e no ecrã, a nova moral assim triunfa, vendida sempre como “progresso”, ou “avanço civilizacional”, permanentemente propalada pelos jornais e TV, contra a natural sensibilidade da comunidade, mas servindo superiormente os interesses da classe dirigente. Porquê? Porque, lá está, o Estado forte apenas se impõe onde a sociedade fraqueja.
Assim, a nova moral necessariamente vai atacando sempre a família, individualizando cada vez mais, dividindo infinitamente, agora até os próprios indivíduos nas suas partes “indentitárias”, sobre as quais o jugo moral e julgador do colectivo bem mandado se debruça com vigor e sem remorso — tudo dividir para em tudo reinar, tudo julgar para tudo regulamentar.
Os democratas-liberais imaginaram, e alguns imaginam ainda, um mundo sem morais, apenas regido pela razão e o interesse próprio, mas esqueceram-se, porque na hubris de se imaginarem conhecedores da verdade, que sem um código moral de valores não há racionalidade que possa triunfar — esta, vazia de conteúdo, formal, não-substancial, apenas reflecte os princípios, crenças e valores dos homens, e uma sociedade racionalmente ordenada carece da crença comum que esse ordenamento que é proposto é bom para todos — crença a qual é tão mais forte quanto as normas impostas pelo Estado estiverem de acordo com os valores naturalmente partilhados pela comunidade. Foi, aliás, essa partilha comunitária que gerou a fé no liberalismo contemporâneo, isto, infelizmente, sem que este se apercebesse do legado que, primeiro, recebeu, e, depois, com desprezo, tratou de desbaratar.
No final, sobrar-nos-á uma pequena lição. Onde há muito que se sabe que a ideia do “bom selvagem” não passou de um sonho ingénuo e optimista, se retirarmos a uma sociedade o código de valores que lhes permitiu, desde há milénios, distinguir o mau do bom, então, sem qualificativo valorativo, ao bom selvagem apenas sobra uma componente — a do selvagem. E, como vimos, numa sociedade de selvagens quem manda, por definição, é o Estado.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.