Quanto aos taxistas, que dizer? Talvez que é mais fácil compreendê-los do que simpatizar com eles. Os táxis beneficiaram, durante anos, de um sistema público de contingentação que não só fez dos alvarás um bom negócio, mas permitiu aos condutores cultivar impunemente as mais variadas excentricidades corporativas, seguros de que aos clientes, sem alternativa, não restava outro remédio senão sofrer estoicamente a sua má criação, opiniões, e preferências radiofónicas. De repente, tudo foi posto em causa pelas plataformas electrónicas de transporte, que permitiram a milhares de particulares prestar o mesmo serviço a preços frequentemente mais baixos e com muito mais cortesia e transparência.
Até aqui, imagino que já toda a gente tenha aprendido a lição. Mas há outra história por contar. É que, em princípio, os políticos deviam estar com os taxistas. Reparem: esta é uma massa relativamente importante de empresários e de trabalhadores que beneficiam de um monopólio público e das respectivas rendas, e que a qualquer governo poderia interessar ter como clientes satisfeitos. Os taxistas não são funcionários públicos, mas é como se fossem. Mais: estão concentrados nas cidades, cujo trânsito podem bloquear ou perturbar. São o tipo de classe profissional capaz de proporcionar à elite política todas as razões para cedências. Seria fácil, aliás, tratar as plataformas electrónicas como exemplos de “capitalismo selvagem”. O esquerdismo primário que hoje em dia passa por ciência nas universidades dispõe, para o efeito, da necessária doutrina sobre a “uberização da economia”.
Era o que se poderia esperar: a classe política portuguesa tornou-se há muito a guardiã das “realidades que vêm de trás”, para usar uma expressão do presidente da república, desde o que ficou do corporativismo salazarista até ao que sobreviveu do PREC gonçalvista. É essa quase que a sua única razão de ser: defender, contra todas as mudanças, velhos estatutos, velhas situações, velhos privilégios, velhas maneiras de fazer as coisas, e as rendas que lhes estão associadas. Sendo assim, porque é que os políticos recusam aos taxistas a mão que estenderam a outras corporações — e, para além de todas as vantagens que a lei já tenta garantir aos táxis, não impõem também a contingentação às plataformas (porque, como é óbvio, a contingentação é o grande problema)?
Há dias, o presidente da república ajudou a desvendar o dilema: “O que eu espero é que se atinja um equilíbrio justo na concorrência ante uma realidade que vem de trás e é socialmente muito importante e uma realidade que arrancou há menos tempo e que está a alargar-se na sociedade portuguesa.” A segunda parte da frase diz tudo: esta é talvez uma das poucas situações em que a nova economia criou rapidamente uma massa de interessados que, apesar de inorgânica, nem por isso deixaria de reagir, mais não sendo com mau humor. A adesão às plataformas electrónicas foi quase instantânea e maciça. Já é difícil imaginar a vida urbana sem a facilidade de chamar um carro pelo telemóvel, e sem surpresas sobre o percurso, o preço e os humores do condutor. Significativamente, pouca gente pareceu nos últimos dias queixar-se da falta de táxis.
Imaginem que as plataformas digitais de transporte ainda não tinham aparecido. Estaria agora alguém a dizer-nos que, caso fossem autorizadas, só os ricos passariam a poder usar transporte individual. Tal como, muito provavelmente, se o retalho alimentar fosse, como outros serviços ainda são, um monopólio estatal, teríamos imensa gente a explicar-nos que sem supermercados do Estado não haveria comida no país. O reaccionarismo do regime depende de não podermos experimentar outras coisas. Neste caso, experimentámos. Já é demasiado tarde para voltar atrás.