A conscrição, ou “SMO” (serviço militar obrigatório), é um problema de política pública, mais amplo e complexo do que as vertentes militar ou geopolítica, em que foi colocado.
No corrente vivo debate mediático, abundam declarações de degradação de valores da juventude, atribuída a individualismo e falta de patriotismo. O comandante da Armada falou em “comodismo e indiferença” num artigo de opinião da sua autoria no Expresso. O comandante do Exército disse no Expresso que “a passagem pelas fileiras equivale à frequência de uma escola de cidadania”. O general Vieira Borges declarou numa entrevista ao Público que “os valores da instituição [“do valor da disciplina, do valor da coesão, do valor da camaradagem”] estão cada vez mais afastados dos valores dos jovens”. Os autores não apoiam as suas opiniões em estudos científicos.
Uma lição que aprendi em três décadas de vida militar foi a de duvidar de proclamações morais, sempre bem-sonantes e que se refletem bem em quem as faz. Há honrosas exceções; mas não é difícil encontrar falhas na maioria dos que as fazem, que logo se defendem dizendo que “tinha de ser assim”.
E não é nada de novo: uma breve busca no Google revela que há séculos, pelo menos, que os velhos se queixam da degradação moral e dos valores dos jovens das suas épocas. A expressão “Kids these days” resume o desencanto subjacente àquelas declarações. Estudos recentes mostram que a degradação moral, da comunidade ou dos jovens, é uma ilusão e uma ideia localizada.
O mito da degradação moral dos jovens voltou ao espaço mediático a propósito da falta de voluntários para os exércitos, e de desejos de restaurar a conscrição para suprir faltas de efetivos militares. Deixemos de lado, por agora, o escrutínio dos pressupostos: faltam mesmo? A referência é adequada? É outro debate.
O comandante da Armada falou em “Reequacionar o serviço militar obrigatório, ou outra variante mais adequada” e o comandante do Exército disse que “a reintrodução do SMO justifica-se ser estudada”; uma semana depois, o comandante da Armada recuou, dizendo que “a escassez de pessoal nas Forças Armadas e sobre isso nós temos que tentar resolver, não é com recrutamento obrigatório”…
Afirmou ainda que “Outra desvantagem é que um serviço militar profissionalizado reduz o conhecimento na população dos assuntos militares a um núcleo pequeno dos seus cidadãos”. Uma opinião que menospreza os benefícios da eficácia e da eficiência que resultam da especialização. Mais: os militares que dizem coisas destas não veem desvantagem em eles próprios não conhecerem bem as normas jurídicas, na Constituição e nas leis, que são as “regras do jogo” da nossa vida em comunidade, normas que juraram cumprir e defender – e tantas vezes respondem que “isso é para os juristas”.
O general Vieira Borges, coordenador da Defesa da SEDES, referiu ainda que “O serviço nacional de cidadania seria […] uma espécie de serviço militar obrigatório”; e referiu que 47% dos inquiridos num estudo de opinião da SEDES eram a favor do regresso do SMO. A validade sociológica deste resultado depende da qualidade técnica do estudo, e de saber se os 47% que apoiam a conscrição estão livres dela, mas a querem impor a outros.
O comandante dos exércitos (CEMGFA) declarou, numa entrevista ao Diário de Notícias, que “procurar que, através do serviço militar obrigatório, tenhamos mais militares é redutor”. E reforçou esta posição, dias depois, numa resposta ao Diário de Notícias. Mais sensato ainda, o comandante da Força Aérea manteve-se em silêncio.
O contexto explícito deste debate é a falta de voluntários, e as vagas por preencher nos exércitos. Não será coincidência ter sido lançado no vazio “entre governos”: um estava de saída e o outro ainda não tomara posse. E não será também, ter o debate sido lançado por Gouveia e Melo no Expresso, cujo dono tem sido o zeloso animador da campanha do “vice-almirante das vacinas” a Presidente da República (PR) – e logo Balsemão, protagonista da Revisão Constitucional de 1982, que contrariou (bem) o então PR, militar, quanto à presença de militares dos exércitos na política e na segurança interna.
Não terá sido coincidência que à defesa do SMO se tenham seguido recuos poucas horas depois, através de jogos de palavras ou ambiguidades. Espero que isso se deva a o novo Governo ter deixado claro que os militares que querem fazer campanha ou política têm toda a legitimidade – mas só depois de abandonarem a efetividade de serviço.
É extraordinário que haja comandantes dos exércitos a sugerir o regresso da conscrição, que bem sabem que não vai resolver a falta de voluntários, em vez de se concentrarem em criarem melhores condições para haver voluntários. Deviam estar a trabalhar em conjunto e sem preconceitos, a elaborar opções com altas relações de benefícios-custos, e que mereçam aprovação política; sem prejuízo de atuarem internamente. Aliás, é de realçar que, com a sua notoriedade mediática, e a propaganda que os media dele fazem, o comandante da Armada não só não conseguiu cativar mais voluntários, como acumula a mais elevada taxa de abates aos quadros permanentes, até de oficiais em fase avançada da carreira, e coloca sargentos a realizar funções de praças. Estes abates, dissimulados nas estatísticas divulgadas, contrariam as encenações. E cabe perguntar: os oficiais que tomaram aquela decisão aceitariam o que estão a fazer aos sargentos?
É oportuno notar que algumas vozes contestam (agora) a conscrição, porque acham que serve fins belicistas para uma alegada “guerra que está a ser preparada” (Matos Gomes) – como se as forças leais a Putin, e outras alimentadas pelo Irão, não tivessem já criado guerras, que levaram os atacados a defender-se. Também esta argumentação, claramente conotada com simpatizantes de Putin, ou melhor, com antagonistas da NATO, dos EUA e da UE, é circunstancial e desvia-se da matéria de fundo.
O SMO foi durante 13 anos um instrumento para ter mão-de-obra barata (“carne para canhão”) numa guerra injustificada. Acabada a guerra, continuou a oferecer mão-de-obra barata aos exércitos, sobretudo para tarefas menores, incluindo fazer limpezas, carregar pesos, e servir e conduzir oficiais. Entregues os conscritos à gestão autónoma dos exércitos, por que razão vão os chefes militares fazer uso desses recursos de modo diferente do que se fazia antes?
A evolução tecnológica torna inviável o emprego direto de cidadãos civis, muito diversos, nas atividades militares, sofisticadas, que exigem longos e exigentes períodos de formação e treino. Logo, é inevitável que a larga maioria fique confinada a tarefas modestas, até para libertar a maioria dos militares profissionais para a sua missão, e para aquilo em que são insubstituíveis: fazer a guerra, para defender a sua comunidade nacional ou alargada.
Como notaram no Expresso, Ricardo Reis e Luís Aguiar-Conraria este debate separa visões liberais de visões autoritárias. Num Estado de Direito Democrático, os cidadãos não são recursos à disposição do Estado, e menos ainda de funcionários do Estado, por mais altos que sejam. São cidadãos plenos, a respeitar. Se há falta de pessoal para fazer tarefas modestas, os exércitos devem subcontratá-las a empresas certificadas para o efeito, abandonar outras, incluindo mordomias; e adotar processos mais eficientes.
Também em artigos acima citados, se notou que cidadãos conscritos consomem, mas não produzem; a produção é essencial à atividade económica, da qual se obtêm os impostos que sustentam o funcionamento dos serviços públicos, incluindo os exércitos. Os serviços públicos são essenciais para a existência da comunidade. Mas se consomem recursos de tal modo que impeçam um crescimento económico robusto, isso vai gradualmente reduzir a coleta fiscal, e a capacidade de sustentação dos próprios serviços públicos; assim, gera-se um círculo vicioso que conduz ao colapso. Isto é, os serviços públicos em geral, e os exércitos em especial, têm todo o interesse em não serem consumidores egoístas, e ajudarem o país a crescer economicamente, para garantirem a sua própria existência e evolução no futuro.
Sem esquecer que há a considerar as elevadas despesas fixas para manter o sistema de recrutamento, e com alimentação e saúde, alojamento e fardamento dos conscritos.
Como instrumento de política pública, a conscrição, porque aumenta despesas e retira recursos produtivos à economia, só é adequada para enfrentar uma ameaça existencial à nação ou à pátria, e quando todos são poucos. Portugal não enfrenta, hoje, ameaças existenciais. Pode vir a enfrentar, mas ainda não.
É verdade que vários países de leste e nórdicos mantiveram ou recuperaram a conscrição, que fundamentam na ameaça direta da vizinha Rússia de Putin à sua existência. “Quem faz um cesto, faz um cento”: desde a Georgia e a Crimeia, que Putin tem vindo a violar o Direito Internacional, culminando na invasão e destruição da Ucrânia, e anexação de territórios; e não só não mostra qualquer vontade de parar, como há dirigentes russos até mais agressivos. Para não repetir o errado apaziguamento de Chamberlain em 1938, a Europa e os EUA têm de travar Putin, militarmente. E Portugal deve participar nesse esforço. Mas tem de o fazer de modo proporcional e oportuno, face à ameaça.
E nada faz supor que, ocorrendo ameaças existenciais, os jovens se esquivem a defender o seu país, ou até a Europa, de que se sentem cidadãos, em larga medida graças ao Erasmus, a Schengen e a viagens baratas.
Agora não são voluntários, porque não veem razão; não é legítimo concluir que revelarão falta de valores morais quando todos formos imprescindíveis para defender Portugal, a Europa e o Ocidente de ameaças existenciais.