A palavra ventilador entrou no léxico mediático. Jornalistas, comentadores e políticos têm discorrido sobre preços, especificações técnicas e fornecedores deste equipamento.
As imagens dos aeroportos, com as respetivas caixas junto dos aviões, transmitem a ideia errada de que chega, por via área, uma solução milagrosa para todos os problemas.
Os ventiladores são um dispositivo clínico destinado a auxiliar na respiração quando, por exemplo, se verifica uma insuficiência respiratória grave, como sucede com muitos dos infetados por SARS-CoV-2. E, por isso, são fundamentais.
No entanto, é desnecessário descrever os procedimentos complexos executados por um enfermeiro ou os cuidados de enfermagem altamente diferenciados aos doentes em ventilação mecânica. Basta dizer que, sem os recursos humanos adequados, os ventiladores não servem para nada.
Não tenho a mínima dúvida e até sou testemunha direta do empenhamento sério do Governo e das autoridades de saúde nesta luta. Aliás, verifica-se um consenso nacional. Todo o país trabalha para as soluções, tentando contornar os problemas. E muitos problemas têm sido ultrapassados, mas há outros que, incompreensivelmente, subsistem.
Os enfermeiros representam uma grande percentagem dos profissionais de saúde em Portugal e são absolutamente necessários para a resposta global à pandemia, mas também são um dos grupos mais vulneráveis, e, por isso, estão apreensivos e temem pela própria saúde e da sua família. E quando toda a atenção e energia da classe deveria estar focada no exercício da profissão, persistem questões dispensáveis.
A título de exemplo, basta constatar a contradição de um enfermeiro em isolamento profilático ser compensado com o seu vencimento integral, mas, se contrair a Covid-19 e esta lhe for certificada como doença profissional (tendo contrato individual de trabalho ou contrato de trabalho em funções públicas posterior a 2005), passa a receber apenas 70% do vencimento.
Acresce que, uma vez que se verifica a transmissão do vírus na comunidade, nem sequer é claro que essa doença venha a ser enquadrada no regime das doenças profissionais. Porque não há como provar que foi contraída no exercício profissional.
É urgente, pois, que a Covid-19 seja, para todos os efeitos, reconhecida como doença profissional quando contraída por um enfermeiro em funções, sem qualquer margem para dúvidas.
E também que, excecionalmente, que é justamente para isso que serve o estado de exceção em que nos encontramos, se considere que os enfermeiros que fiquem doentes, independentemente da sua situação profissional, não sofram cortes no seu já parco rendimento.
Estas questões parecem elementares, sem expressão orçamental e simples em termos de procedimentos, mas a verdade é que não estão implementadas.
E nem se diga que se trata de problemas laborais, susceptíveis de negociação, porque, com a declaração do estado de emergência e a mobilização de todas as pessoas e instituições para um esforço comum, não faz sentido sequer aludir-se a isso.
Os enfermeiros portugueses têm estado à altura deste desafio inédito, mas temo pela forma como estão a ser tratados.
Por outro lado, à medida que a crise se prolonga no tempo, é muito importante a visão estratégica de contratar de forma consistente mais profissionais de enfermagem, de modo a evitar o rápido desgaste dos que estão na linha da frente e atenuar as sequelas posteriores no Serviço Nacional de Saúde, que já se encontrava bastante debilitado.
Portugal precisa, mais do que nunca, de se questionar sobre o tipo de sistema de saúde que quer no futuro e quanto está disposto a pagar por isso. Noutros países, essa opção já foi feita há muitos anos e é clara: a qualidade custa dinheiro, mas a saúde não tem preço.
Nestes tempos de peste, que, infelizmente, não vão acabar amanhã, é preciso avaliar seriamente a importância dos enfermeiros e proporcionar-lhes uma proteção completa e condições para exercerem a profissão com dignidade e segurança. E o mesmo deve suceder com quaisquer outros profissionais de saúde.
O mundo não voltará a ser o mesmo. A procura no mercado internacional por enfermeiros portugueses, competentes e altamente especializados, vai intensificar-se.
Se o risco e o esforço não compensarem e antecipando-se uma conjuntura económica pouco favorável, vamos assistir a um êxodo sem precedentes de enfermeiros para outros países.
E, se isso vier a suceder, será ainda mais evidente que, afinal, os ventiladores não funcionam mesmo sozinhos…