Pai, explica-me lá o que se passa afinal com o SNS e com estas urgências de obstetrícia sempre a fechar?

Foi no final do jantar que o meu filho de 23 anos lançou a pergunta. Mesmo tendo pais médicos, as suas interrogações com as sucessivas notícias sobre este assunto não deixavam de ser  semelhantes às de muita gente.

Mas como explicar-lhe aquilo que se passa hoje com a medicina estatal do SNS (e a obstetrícia é apenas a ponta de um iceberg muito maior), quando é afinal o resultado de muitos anos, décadas, de um longo caminho descendente e de destruição, repetidamente fugindo das sucessivas soluções possíveis (somos sempre um País do que podia ter sido, mas não foi), até termos chegado ao estado presente de ausência de qualquer escapatória?

Decidi contar-lhe a minha visão desta história.

Terminei a minha licenciatura em Medicina em 1995, comecei a trabalhar em 1996 e terminei a minha especialização em Medicina Interna em 2004.

Nessa altura, a medicina privada em Portugal constituía ainda uma pequena fatia de todos os cuidados médicos prestados à população, e os grandes grupos privados da saúde davam apenas os primeiros passos. Mas era a medicina estatal, o SNS, a responsável pela grande maioria da medicina praticada no nosso País.

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Desde então, ocorreram três mudanças de paradigma.

Primeiro.

Os médicos passaram a ser contratados para o SNS através de contratos individuais de trabalho. Previamente, para se trabalhar no SNS era necessário haver a abertura de um concurso público, para o qual concorriam os interessados, havia provas de selecção, com determinados critérios e um júri, os candidatos eram ordenados de acordo com a sua classificação no concurso, e o(s) primeiro(s) eram nomeados para a(s) vaga(s) a concurso. Entrava-se assim para o quadro da instituição, para uma posição na carreira médica, com a perspectiva de uma futura progressão em categoria e remuneração.

Com os contratos individuais de trabalho, tudo isso acabou. Por um lado, tornou-se muito mais fácil ser contratado para uma instituição de saúde estatal. Mas, por outro lado, a perspectiva de progressão de categoria e de remuneração quase desapareceu. E estas duas alterações fizeram desaparecer a ligação quase umbilical que havia entre os médicos e a sua instituição, o chamado amor à camisola, porque passou a ser fácil (e habitual) que um médico se desvinculasse e mudasse de uma para outra instituição. A mobilidade dos médicos tornou-se norma.

Segundo.

Um mundo novo e enorme de possibilidade de trabalho fora da medicina estatal do SNS foi criado pelo crescimento que ocorreu na medicina privada, através dos grandes grupos privados de saúde e das instituições que estes construíram. Esse crescimento foi alimentado e alimentou o aumento também da população com acesso a esses mesmos serviços, através de seguros e sub-sistemas de saúde.

Terceiro.

Com o processo de Bolonha, passou a ser automático o reconhecimento da licenciatura em Medicina e das diversas especialidades médicas dos médicos portugueses em todos os países da União Europeia. E estes países precisam de médicos, e procuram-nos activamente, oferecendo, para além de uma remuneração bem superior, condições de trabalho mais vantajosas e atractivas.

Os médicos, a quem tinha sido retirado o amor à camisola e oferecida a mobilidade entre instituições, passaram a ter múltiplas alternativas de trabalho fora da medicina estatal do SNS.

E estas mudanças de paradigma ocorreram simultaneamente com a degradação das condições de funcionamento do SNS.

Com uma população cada vez mais idosa e doente, a necessitar de uma carga crescente de cuidados médicos, e a recorrer a um SNS preso a chefias de nomeação política, com um modelo de funcionamento anacrónico e um financiamento inadequado, foi inevitável a deterioração progressiva das condições de trabalho dos médicos, com a prestação de serviço de urgência a condicionar e a subordinar toda a sua restante actividade. O horário habitual dos médicos sempre incluiu 12 horas semanais de urgência, mas os novos contratos passaram a incluir 18 horas semanais de urgência dentro das 40 horas de trabalho normal, deixando apenas 22 horas semanais para a restante actividade médica, que não foi reduzida, antes pelo contrário. Acresce a isto a já habitual obrigatoriedade (a que não se podem escusar) dos médicos realizarem até mais 12 horas extraordinárias de trabalho em urgência, por semana. Os médicos sempre se queixaram do trabalho em urgência, mas esse trabalho tornou-se cada vez mais caótico e desumano, e as horas cada vez em maior número, dificultando ou impedindo toda a restante actividade. E os médicos tornaram-se como bestas de carga, cada vez mais carregadas e chicoteadas.

A tempestade perfeita estava criada.

Porque as diferenças entre a medicina estatal do SNS e a medicina privada são abismais.

Na medicina estatal do SNS, as pessoas devem inscrever-se no seu Centro de Saúde para lhes ser atribuído um Médico de Família. Para além dessa atribuição nem sempre ser possível, e haver cada vez mais portugueses sem Médico de Família (mais de 1 em cada 10), mesmo para quem o tem, o poder de o escolher é quase nulo.

O acesso dos doentes a consultas hospitalares é dependente da sua referenciação por parte do seu Médico de Família, sendo condicionado pelo tempo de espera por essas consultas, tempo este que é quase sempre elevado, ultrapassando os limites recomendados. Também aí, a liberdade de escolha do utente é nula. Será atendido quando for, e pelo médico que lhe calhar.

Os médicos do SNS auferem uma remuneração mensal fixa, que não tem relação com aquilo que realmente produzem. Façam muitas ou poucas consultas, exames, cirurgias, internamentos, a sua remuneração é sempre a mesma. O que beneficia, claro está, quem menos faz. E desincentiva quem mais faz.

Os serviços estatais do SNS estão cheios de bons profissionais, mas estes são triturados e estragados pelo modo de funcionar do funcionalismo público.

Na medicina privada, o paradigma muda completamente.

Os doentes podem escolher livremente a instituição e o médico a quem querem recorrer. E podem não voltar, se não tiverem ficado satisfeitos, e escolher outro médico da próxima vez. Podem assim mudar de prestador as vezes que quiserem.

Os médicos, por sua vez, são remunerados de acordo com os cuidados que prestam. Mais consultas, exames, cirurgias, internamentos, correspondem a mais remuneração. Podem trabalhar mais ou menos, ter mais férias ou menos, à sua escolha. Claro que se trabalharem menos, ganham menos e, durante as férias, não têm remuneração. Mas são livres para escolherem como querem organizar o seu trabalho e em que instituições escolhem trabalhar. E as instituições privadas de saúde também podem livremente escolher os médicos que querem ou não a trabalhar para si.

Liberdade de escolha de todos os intervenientes.

E, tendo em conta as escolhas que fazem os utentes que têm seguros e subsistemas, e as escolhas que fazem os médicos, parece-me que todos eles se sentem melhor neste sistema.

Quando, em 2022, após mais de um quarto de século a trabalhar exclusivamente no SNS, pedi a exoneração do lugar para que tinha sido nomeado, através de concurso público, há tantos anos atrás, não tinha nada à minha espera na medicina privada, e comecei do zero.

E realizei, finalmente e em pleno, as diferenças de trabalhar num e no outro sistema, diferenças que já “conhecia”, mas que nunca tinha “realizado”, vivido na pele.

Subitamente percebi que todos estes anos eu trabalhara com uma mó de moinho ao pescoço e estava agora subitamente livre. Deixei de estar dependente e subordinado a chefias a quem não reconhecia competência, e a regras sem sentido, típicas de instituições estatais pesadas e imóveis.

Comecei a fazer consultas e a prestar cuidados a pessoas que procuravam especificamente pela minha pessoa. Faziam-no através de algum colega que me tinha recomendado, ou por um amigo ou familiar que me tinha consultado ou ouvido falar de mim, ou pela descrição simplesmente da minha especialidade e área de trabalho. E a relação que se estabelece entre médico e doente, nestas circunstâncias de escolha livre, é intrinsecamente diferente daquela que ocorre na ausência de liberdade de escolha. Não consigo explicar com mais detalhe nem descrever melhor esta diferença a quem não a tenha experienciado na pele, quer como médico, quer como doente. Mas quem já o fez, sabe do que estou a falar.

Verifiquei existir também uma escolha no âmbito das entidades para quem eu estava disponível para trabalhar, e uma escolha também de quem me queria a trabalhar para si.

E comecei a trabalhar sentindo-me mais livre, mais leve e até melhor médico.

Neste ponto já adiantado da conversa, fui interrompido.

Pai, percebo tudo isso, mas então qual é a solução para este problema? O que achas que vai acontecer?

São duas perguntas distintas.

Em relação à primeira, sinceramente, não vejo qualquer hipótese de solução para a medicina estatal do SNS, nos moldes em que a conhecemos.

A solução para o SNS é a dissolução.

Em relação à segunda, não acho que aquilo que vai acontecer seja uma dissolução, assumida como tal. O que acho que vai ocorrer, daqui para a frente, é uma dissolução disfarçada, no fundo uma continuação do que tem acontecido nos últimos anos.

Cada vez mais portugueses vão ter sistemas de acesso comparticipado à medicina privada. E estas pessoas vão progressivamente deixar de recorrer à medicina estatal do SNS.

Quem sai, já não volta.

Que o diga quase toda a classe política, que recorre à medicina privada e não à estatal quando precisa.

Cada vez mais médicos (cada vez mais jovens e em fases mais iniciais da sua carreira) vão sair da medicina estatal do SNS, quer para a medicina privada, quer para o estrangeiro. E esses também não vão voltar.

Quem sai, já não volta.

E o SNS vai continuar progressivamente a ser o sistema de saúde daqueles que não têm mais nada, que não têm escolha. Quer doentes, quer profissionais de saúde. Vai continuar a degradar-se, por muito dinheiro, comissões e reorganizações fictícias que nele operem. Por muito que aumentem o número de licenciados em Medicina. Até que finalmente seja um resquício pequeno e triste daquilo que podia ter sido.

Não sei se terei explicado tudo bem ao meu filho, e não sei exatamente o que ele ficou a pensar. Pareceu-me um pouco triste e preocupado. Mas esta nova geração é muito mais ágil a mudar o seu paradigma de pensamento e parece-me que se vão adaptar a este novo funcionamento do sistema de saúde português com muito mais facilidade.

Com mais facilidade do que aqueles que nos dirigem.