Ouço-os a falar. Apontam causas, culpas e culpados. Sugerem intervenções e soluções.

Não fazem ideia.

Primeiro-Ministro, Presidente, Ministra, Ordem, sindicatos, oposição, políticos, comentadores. Mesmo os médicos mais velhos.

Não fazem ideia.

E anunciam planos de contingência, comissões e reuniões. Prometem mais dinheiro e mais contratações.

Não fazem mesmo ideia.

Os que estão lá, na “linha da frente” (lembram-se das palmas que lhes bateram? Onde isso já vai…), nas urgências com afluência que bate recordes, sem vagas para internamento, sem recursos… esses fazem ideia. Vivem essa realidade na pele.

Mas os outros não. Acham que sim. Mas não fazem ideia.

O mundo mudou. E eles não perceberam e não percebem.

Os médicos passaram de elementos pertencentes a um quadro da instituição, com carreira e progressão automática, para “colaboradores-médicos”, com contrato individual. Acabou o “amor à camisola”.

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Só que o Estado, ao se desvincular da ligação que existia com os médicos, também os desvinculou do SNS. E, em simultâneo, o agravamento das condições de trabalho, desajustadas da realidade, elevou os sacrifícios exigidos para níveis inaceitáveis. E surgiram alternativas. É possível mudar de instituição, estatal ou privada, em Portugal ou no estrangeiro.

Eles não fazem ideia.

E aumentam infinitamente o número de vagas em Medicina, na esperança de que, com o aumento do número de médicos, também aumente inevitavelmente o número daqueles que aceitem trabalhar nas condições degradantes das instituições estatais.

Mas é como aumentar o volume de água que enche um reservatório furado: apenas aumenta a fuga, e não o nível da água.

E assim vai crescendo o número de médicos, mas não os que trabalham para o Estado.

Não fazem ideia.

O mundo mudou.

Mudaram os doentes, que são agora mais velhos, mais doentes, mais dependentes, e simultaneamente mais reivindicativos e exigentes de mais cuidados, mesmo que excessivos e inúteis, cuidados cada vez mais “gratuitos” (pseudo-gratuitos, que alguém os há-de pagar), de taxas moderadoras isentas ou terminadas. Perversão da realidade.

Não fazem ideia.

Era imperativo tornar atractivo trabalhar no SNS. Seria essencial mudar a sua forma “função pública” de funcionar.

Talvez há 10 anos ainda fosse possível impedir a situação actual. Há 2 anos seria já difícil. Mas tudo aquilo que aconteceu desde então foi demasiado.

O SNS atingiu um ponto de implosão, sem retorno. Apenas podemos observar, tentar minimizar os danos e fugir dos estilhaços.

A única solução é a dissolução.

O jarrão chinês, há muito partido e colado, estilhaça-se agora enfim.

E eles não fazem ideia.

Perguntem aos médicos mais jovens o que seria preciso para se manterem no SNS. Perguntem a quem saiu quais as condições para que aceitassem regressar.

Talvez então compreendam a irreversibilidade daquilo que se passa.

Até lá, continuarão a não fazer ideia.