Vivemos num tempo concreto em que o nosso quotidiano, por razões de saúde pública, está limitado por múltiplas decisões e condicionado pelos efeitos da pandemia. A Escola, por ser uma peça central da vida em sociedade, tem sido afetada no seu funcionamento regular. Tem dado provas de resiliência e compromisso, mas também tem revelado problemas prévios, já conhecidos e estudados, mas até aqui ou evitados, porque difíceis, ou tratados com lento progresso.

Mas este tempo concreto pode ser favorável à construção de soluções, precipitadas pela urgência de uma resposta que se tornou difícil de ignorar ou impulsionadas pela disrupção a que o sistema foi forçado. Neste tempo, a Escola tem grandes desafios em três domínios: desigualdades, docentes e digital.

Desigualdades

Já antes da pandemia sabíamos que a Escola não está a cumprir o seu propósito de anular as desigualdades de partida e, em alguns casos, está até a permitir o aumento do fosso entre alunos – presente e futuro. A partir dos resultados do PISA e do “Estado da Educação” (CNE), já aqui tinha elencado alguns factos, designadamente que:

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  • O número de alunos no ensino básico com dois ou três anos de desvio face ao ano escolar adequado é elevado e cresce longitudinalmente, ou seja, o insucesso vai-se acumulando e, no 9.º ano, 29% dos alunos não têm a idade “ideal”. Dos 22.270 alunos que não frequentam o ensino básico regular, 30,4% têm 17 e mais anos (CNE);
  • A maior percentagem de alunos que beneficia de Ação Social Escolar (ASE) frequenta percursos alternativos ao ensino regular nos 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico e os cursos profissionais no ensino secundário, o que parece indiciar uma relação entre contextos socioeconómicos desfavorecidos e dificuldades de aprendizagem (CNE);
  • A diferença de desempenho no PISA entre alunos provenientes de contextos favorecidos e desfavorecidos é de 95 pontos – a média portuguesa é de 492 pontos (PISA);
  • Dos alunos provenientes de contextos desfavorecidos, independentemente do seu score, 40% não se permite aspirar a frequentar o ensino superior – o que acontece apenas com 7% dos alunos de contextos favorecidos (PISA).

No ano letivo de 2019/2020, em que as escolas estiveram essencialmente em ensino a distância de março a julho, sabe-se que houve um impacto negativo significativo nas aprendizagens dos alunos. E que esse impacto não foi uniforme, por exemplo:

  • Para aceder ao ensino a distância, são requeridos equipamento e internet de banda larga, que não são garantidos nem para todos os alunos nem da mesma forma;
  • Nem todas as casas e famílias têm as mesmas (boas) condições físicas para estudar ou capacidade para apoiar o estudo dos seus filhos – sabendo-se, que, à partida, a escolaridade das mães é um fator preditor do sucesso educativo e que só a algumas famílias é possível “compensar” lacunas com recurso a “explicações”;
  • Nos anos de ensino secundário há o risco da maior autonomia dos alunos significar maior ou menor atenção dada às aulas, e nos anos iniciais há o risco da consolidação de aprendizagens básicas estar fragilizada.

Combater, na escola e na sua envolvente, estas desigualdades agora ainda mais expressivas, tornou-se num imperativo já neste ano, até porque a descontinuidade continua a marcar os dias da Escola – com alunos e professores intermitentemente em isolamento ou quarentena. E, para atuar de forma eficiente e eficaz, é essencial informação – para prevenir o abandono potencial e para fazer um diagnóstico rigoroso das necessidades dos alunos.

Docentes

Já antes da pandemia sabíamos que a classe docente está envelhecida e que tem tido pouco rejuvenescimento. Dados do Ministério da Educação e do CNE mostram que:

  • Há cerca de 63 mil professores com idade superior a 50 anos e, destes, cerca de 40 mil terão mais de 55 anos. A idade média destes docentes nunca é inferior a 47 anos, em qualquer dos diferentes ciclos de ensino e só 1,3% tem menos de 30 anos;
  • Nos próximos 10 a 15 anos, sairão do sistema educativo, por aposentação, cerca de 60 mil professores e educadores, o que representa aproximadamente 40% do universo docente e sairão sem que esteja garantida uma “passagem de pasta” articulada com os novos professores;
  • Os cursos superiores da área de “educação” têm vindo a registar perdas importantes, atingindo em 2018 o valor mais baixo de inscritos desde 2009.

A esta classe docente, com estas características, foi exigida uma mudança profunda e brutalmente rápida na forma de ensinar os conteúdos, garantir a aprendizagem e motivação dos alunos e gerir a relação educador-educando.

No presente ano letivo, o número de horários de docentes por preencher mais do que duplicou em relação a 2019 – a falta de professores, que já é uma realidade em algumas disciplinas ou em algumas geografias, foi agravada pelas baixas de risco e pelas ausências por determinação da DGS. Os diretores das escolas, mas sobretudo os alunos e os seus pais, desesperam com a falta de professores e a falha persistente no direito à educação.

É imperativo discutir um conjunto de questões: como atrair estudantes, e quais estudantes, para serem professores nas nossas escolas? Como deverá ser “modernizada” a sua formação? Deveremos privilegiar a formação científica ou a formação didática de docentes? Como deverá ser feita a seleção, o recrutamento e a colocação dos professores nas escolas? Se não decidirmos sobre estas questões no presente, o futuro retirar-nos-á a liberdade de fazer escolhas certeiras.

Digital

Já antes da pandemia sabíamos que as escolas não estão devidamente apetrechadas no que diz respeito a hardware e a acesso à internet. Os dados do Ministério da Educação demonstram o desinvestimento nesta área:

  • Em 2019 havia 4,7 alunos por cada computador numa escola pública, numa deterioração do parque informático que permitia, em 2014, 2,9 alunos por computador;
  • Em 2019 havia 5 alunos por cada computador com acesso à internet numa escola pública, bastante pior do que o mesmo rácio em 2014, de 3,5 alunos por computador com internet;
  • A percentagem de computadores com mais de três anos nas nossas escolas ronda os 84%;

Nestas condições, as escolas não têm computadores para uma utilização regular e imersa na atividade letiva e, em tempos de pandemia, para assegurar o ensino a distância, tinham escassos recursos para ceder às famílias carenciadas.

É essencial criar um “level playing field” para dar resposta ao momento presente, em que, como acima refiro, continua a realidade do ensino a distância para alunos e professores que estão em casa em quarenta ou isolamento profilático.

Por outro lado, o conhecimento e a experiência sobre o digital, arduamente ganhos durante os meses de março a julho, são ativos que não podem ser desperdiçados. Ao contrário, devem ser potenciados ao serviço de uma maior personalização do ensino, de novas oportunidades de aprendizagem, de uma maior conexão com a realidade quotidiana dos alunos, sempre de forma complementar ao ensino presencial. Não perder este momentum, não voltar ao “como sempre fizemos”, é outro imperativo deste ano.

Para mitigar as desigualdades precisamos, nas nossas escolas, de professores capacitados, motivados e disponíveis para a inovação. Esses professores, munidos de boa informação, guiarão os seus alunos nos processos de aprendizagem com maior sucesso se estes, por sua vez, tiverem acesso e compreenderem o digital como instrumento de personalização e apoio ao seu ritmo escolar.

Também por isto – e não só pelo tipo e número de escolas – se fala em “sistema educativo”. Porque estas dimensões e estes desafios estão relacionados entre si. E para o cumprimento do papel da escola como “elevador social” e para o maior sucesso dos alunos, há que saber tratá-los articuladamente – como um todo.

Em tempos de pandemia, é essencial não esperar, mas antes enfrentar estes pandesafios para a Educação.

“Caderno de Apontamentos” é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.