Segundo notícia recente, quase 60 por cento dos alunos do nono ano chumbaram no exame nacional de matemática. Mas não há que temer: os alunos poderão não saber representar intervalos de números reais na reta numérica, mas terão debatido, em sala de aula, quantas posições há no sexo e, mais importante, que o género é um espectro no qual cada um pode posicionar-se de acordo com o que sente, as fases da lua, as marés, ou os desígnios da astrologia. Podemos estar na cauda da Europa, ter professores precarizados, cansados e, em muitos casos, desautorizados, mas mantemo-nos firmes pontas de lança do progressismo bacoco. Prova recente dessa firmeza é a intransigência com que o Estado português, indo de peito cheio contra o bom senso e a própria Constituição, lida com o caso da família de Famalicão, cujo crime é teimar em acreditar nessa estrutura do hétero-patriarcado conhecida como biologia.

O caso tem muitas faces e pode – e deve – ser analisado sob diferentes perspetivas. Uma delas é o que nos diz da direita portuguesa, nas suas versões conservadora e liberal. Num tema fundamental, o que ouvimos são defesas acríticas da disciplina e dos seus conteúdos, lamentos sobre a obstinação de um pai que expõe em demasia os seus filhos, ou reparos a um Estado que faz bullying (como se Artur Mesquita Guimarães fosse uma personagem exótica, e isso justificasse uma excecional e piedosa dispensa). São poucos, muito poucos, os que entendem que não é suposto que pais e mães, de alunos de excelência ou de alunos medíocres, gastem tempo, recursos, e paciência para reivindicar um direito fundamental que lhes é reconhecido pela Constituição, ou simplesmente para poupar os seus filhos do constrangimento de, com 9 anos, terem de responder a uma “ficha sociodemográfica” onde lhes é perguntado, entre outras coisas, se se sentem atraídos por homens, mulheres ou ambos.

Não menos surpreendente é o silêncio da direita perante aquilo que hoje sabemos serem as consequências de disciplinas como a de ‘Cidadania’, mesmo depois de escândalos como o da clínica Tavistock, unidade do sistema nacional de saúde britânico dedicada à transição de género. Mandada fechar pelo governo, em Tavistock foram prescritos bloqueadores de puberdade a crianças e adolescentes homossexuais, com transtornos do espectro autista, depressões ou a passar por crises próprias da idade. O silêncio dos serviços administrativos do ministério da educação inglês perante a acusação de que inúmeras crianças e adolescentes foram incentivadas, nos bancos da escola, a questionar a sua identidade de género é particularmente revelador.

Regressando ao caso de Famalicão, a direita portuguesa não foi capaz de identificar aquilo que está em causa. E não foi capaz porque nunca entendeu o alcance da cooptação ou demolição sistemática das instituições intermédias, como a família, a Igreja, ou as agremiações locais, cujo papel é o de garantir que o estado não é o único baluarte da ordem, capaz de chamar a si o controlo total dos destinos do indivíduo.

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A grande encruzilhada

E assim este caso remete-nos também para a atual crise da democracia liberal.

De Madrid a Birmingham, da Virgínia a Famalicão, a polarização em torno da educação é reflexo da encruzilhada em que se encontra a democracia liberal. Um regime que, como todos os outros, não está imune a sucumbir às contradições que os seus próprios princípios acabaram por criar e alimentar.

Produto ou dano colateral do liberalismo, vivemos um tempo em que deixámos de acreditar na possibilidade de verdade, passando a interpretar e recriar a realidade segundo as nossas perceções, inclinações e emoções (que são, naturalmente, muitas e muito diferentes). E assim os conceitos de bom, justo e belo, de democracia ou liberdade, passaram a ter múltiplos significados, por vezes irreconciliáveis, e foram-se inevitável e progressivamente esvaziando de qualquer sentido. Só que nesta difícil e meritória busca pelo pluralismo, e ao abrigo de uma ilusória neutralidade, os espaços vazios deixados pelo liberalismo abriram portas ao relativismo e à atomização que, por sua vez, parecem agora dar lugar a processos de tribalização, acompanhados por crescentes ameaças às liberdades individuais.

É que, como nota Martha Nussbaum, na sua aparente neutralidade, o liberalismo implica uma posição normativa: a moral liberal considera que as vidas autónomas são superiores às vidas ordenadas hierarquicamente. Na sua obsessão pela soberania moral do indivíduo, pela possibilidade da “omnicompetência” derivada da razão, o liberalismo acabou vítima de si próprio: a desconstrução do hábito, da tradição e de todas as relações sociais que eram garante de uma ordem social centralmente desordenada faz jus ao sonho hobbesiano do estado como único garante da ordem, e à ilusão de Rousseau sobre uma moral que radica num (pretenso) coletivo e não no indivíduo. E quem define a moral coletiva? Um burocrata estatal, que tem por missão cumprir o desígnio de Rousseau: sereis livres, mesmo que forçados a tal. Daí que a direita dita liberal portuguesa reconheça a possibilidade de objeção de consciência, mas muito pouco (ou nada) tenha a dizer sobre as consequências de o estado forçar os filhos daqueles que não evocam esta esta objeção a ser libertos do jugo do bom senso, quer queiram quer não.

O projeto liberal luta hoje contra a evidência de que num mundo constituído por indivíduos alegadamente libertos das instituições intermédias, nas quais nascem e se socializam, só resta o estado como garante da ordem – e da moral – social.

Na educação, a progressiva perda de fé na razão acompanhada por uma fé ilimitada no indivíduo refletiu-se na alteração do paradigma epistemológico, agora marcado pela abordagem construtivista. Essa influência é especialmente evidente em contextos políticos onde a nova esquerda tem uma posição hegemónica sobre aquilo que Gramsci definiu como a superestrutura, isto é, os lugares onde o sistema de valores é determinado.

E, de facto, nessas latitudes, a contradição é evidente: qualquer homem ou mulher de boa vontade reconhecerá que não há nada de neutro em conteúdos como a teoria crítica da raça, ou a educação de género e diversidade sexual. São abordagens que apresentam e impõem às crianças e aos jovens uma mundivisão e conceção antropológica especifica, ideológica e, por isso mesmo, parcial. É que, embora incorrendo no crime de pensamento, é razoável contestar a teoria de que o racismo é estrutural, ou de que o género é uma construção social.

O erro lógico que frequentemente encontramos aqui é o de pressupor que a neutralidade é algo desejável: não é. Antes pelo contrário. Não há nada de neutral no seio das relações familiares, ou no seio de uma comunidade local, e é do mais elementar bom senso que tal neutralidade não exista. Mas sendo a neutralidade impossível, a única coisa que nos defende da tirania é o pluralismo. De conceções, e de escolhas.

O caso da família Mesquita Guimarães mostra assim como o liberalismo está a falhar na sua promessa de um Estado que, sendo pretensamente neutro, permitiria acomodar uma pluralidade de conceções. E mostra que o exercício do poder, tal como a educação para a cidadania, implica escolhas, i.e., decidir entre valores e princípios distintos e muitas vezes irreconciliáveis. Se, para uns, os seus filhos serão bons cidadãos na medida em que saibam responder a perguntas como “quando é que decidiste que eras heterossexual?” ou “se a heterossexualidade é normal porque é que existem tantos doentes mentais heterossexuais?”, para outros expor os filhos a tal questionário é uma violação da sua liberdade de consciência. Para outros ainda, onde nos incluímos, é uma via rápida para a imbecilização das próximas gerações.

Paradoxos

Há um paradoxo nesta pretensão de educar para a cidadania. É que não há cidadania sem cidade, e não há cidade sem chão comum. Esse chão comum é o conjunto de fatores que simultaneamente nos une, e nos diferencia de outros. Um sentido de comunidade e pertença a um todo que, sendo mais do que a soma das partes, existe para proteger os direitos fundamentais de cada uma delas.

Mas como se pode educar para a cidadania, educar para a liberdade no amor à cidade, se já não nos é permitido amar a cidade? Se desprezamos as suas fundações e tradições, se vamos cortando qualquer hipótese de diálogo com aqueles que, nela, nos antecederam? Se nos dividem já não entre explorados e exploradores, mas entre oprimidos e opressores?

Às crianças é agora ensinado que a cidade que encontram não deve ser mantida, mas desconstruída e reconstruída. Veja-se, por exemplo, o projeto recentemente aprovado em Lisboa, que visa confrontar a “História oficial” com a realidade e “desconstruir todos os tipos de discriminação”. É relativamente consensual que as crianças devem ser ensinadas a combater a discriminação e a olhar de forma crítica para o passado. Mas há uma nuance na proposta: ela tem como objetivo combater o racismo “estrutural”. Ora, se o racismo é estrutural, então só poderá ser eliminado mediante a eliminação da própria estrutura. Que é como quem nos diz, desta cidade, onde a democracia liberal e a sua ilusão de igualdade perante a lei, falhou.

Poderá não estar longe o tempo em que o bom cidadão, paradoxalmente, será aquele que, liberto da tradição, da natureza e da razão, devidamente imbecilizado e tendo exorcizado os fantasmas do passado, conseguiu desconstruir e destruir os fundamentos que faziam da sua cidade uma cidade livre. Não deixa por isso de ser particularmente curioso (risível até) que a alguma direita dita liberal tenha escapado algo fundamental na construção do projeto totalitário. Como muito bem recordava Robert Nisbet, o totalitarismo é um affair entre o estado e as massas estupidificadas. O sucesso do totalitarismo depende sempre da incorporação nas estruturas de poder daqueles valores que apelam a um maior número de cidadãos devidamente imbecilizados. Por isso mesmo, o totalitarismo não deve ser reduzido a momentos históricos ditos excecionais. Para que o totalitarismo ocorra, basta que perante as massas seja colocada uma qualquer imagem capaz de evocar valores pretensamente aceites por uma larga maioria. Esses valores podem ser a raça, o proletariado, a nação, a humanidade em sofrimento, o meio ambiente, a igualdade ou, por paradoxal que pareça, a supremacia do indivíduo, das suas escolhas e, não menos trágico, dos seus sentimentos, os quais, como é do mais elementar bom senso, não podem constituir a base da ordem social.

Daí que o projeto liberal encerre em si uma contradição: o sonho do indivíduo desenraizado, liberto da tradição, da religião e da família enquanto antecâmara da derradeira vitória da razão e do progresso, só é possível por via da absorção, pelo estado centralmente administrado, de tudo aquilo que era função das instituições intermédias descentralizadas e regidas pela tradição, por normas não escritas, e por algo bem mais útil do que a razão: o mais elementar bom senso.

À direita, falta um debate em torno de tudo isto. A nossa direita nunca foi, nem parece que esteja em vias de ser, liberal. A direita portuguesa ou é liberal e não é direita, ou é de direita e não é liberal. Daí que, quando confrontada com ‘casos’ como o de Famalicão, os quais remetem para valores que deveriam ser anteriores ao ‘momento político’, se vacile entre uma defesa acéfala da tradição, um namoro tímido e parolo com o que possa parecer moderno, ou um compromisso estéril entre ambos. Lamentavelmente, a direita portuguesa continuará a lutar por um compromisso entre o direito da família de Famalicão a “um tratamento excecional” e o direito do estado a determinar o que constitui um cidadão exemplar. A família de Famalicão é livre; as restantes serão libertadas à força.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.