No próximo mês de Dezembro celebram-se os 41 anos do I Congresso do PS (o de 1973 realizado na Alemanha foi ainda convocado pela antecessora do PS, a Acção Socialista Portuguesa). Numa altura em que está na ordem do dia o posicionamento dos socialistas portugueses em consequência da última campanha eleitoral e dos resultados obtidos é interessante recordar o passado.
Nesse distante final de Outono de 1974 travou-se na Aula Magna da reitoria da Universidade de Lisboa o mais decisivo combate da vida do Partido Socialista. Foi nessa reunião que a maioria dos militantes do PS recusou a via preconizada por Manuel Serra, um histórico oposicionista ao Estado Novo que menos de um mês depois do 25 de Abril tinha negociado com Mário Soares a entrada em bloco do pequeno grupo que chefiava, o Movimento Socialista Popular, no PS.
Agradecendo o trabalho que até essa data tinha sido levado a cabo pela direcção socialista, Serra defendeu que chegara a hora da mudança, que era necessário um maior envolvimento das bases do partido, uma aproximação com as forças políticas situadas à esquerda e um aprofundamento das relações com os militares mais “progressistas” do MFA.
Perante este avanço dos defensores da participação do PS numa frente de esquerda que dera os primeiros sinais de vitalidade a 28 de Setembro, um grupo de elementos moderados do PS apresentou aos congressistas um documento de cariz social-democrata que, entre outros aspectos, defendia como prioridade o desenvolvimento e estreitamento dos laços com a Europa. Tratou-se de uma manobra táctica que visava fazer atrair sobre este grupo os ataques da ala esquerda do partido, permitindo que a liderança de Mário Soares saísse incólume. Foi o que aconteceu.
No fundo, as linhas preconizadas no relatório do secretário-geral não se distinguiam das propostas apresentadas por aqueles que com desdém eram designados de “sociais-democratas”, mas foi este expediente que contribuiu para a vitória da lista A com 63% dos votos contra os 37% obtidos pela lista B. Pouco tempo depois, Serra abandonaria o PS pensando que levava consigo os quase 40% de militantes que julgava representar. Constituiu a Frente Socialista Popular que se apresentou nas eleições para a Assembleia Constituinte onde obteve 1,16% dos votos e que acabaria por gravitar na órbita do PCP (nas primeiras eleições autárquicas a FSP integrou a coligação liderada pelo PCP, a Frente Eleitoral Povo Unido, antecessora da CDU).
O I Congresso do PS estabeleceu assim uma fronteira, que tinha começado a desenhar-se ainda em Agosto de 1974, quando o PS iniciou o processo de ruptura com o MDP, por entender que na nova situação política não fazia sentido que a oposição continuasse a agir como se ainda vivesse em ditadura, contrariando um modelo que tendia a diluir os diferentes partidos numa frente que favorecia as pretensões hegemónicas do PCP sobre as restantes forças políticas da esquerda. Ao criticar nesse Congresso a unicidade sindical, a falta de pluralismo nos órgãos de comunicação social, a hipótese de participação de elementos do MFA na constituinte, e ao defender que era prioritário garantir o sucesso da democracia pluralista, Soares estabeleceu um conjunto de linhas que demarcavam o PS dos partidos à sua esquerda e colocou-o numa posição privilegiada do panorama político em formação, constituindo-se como o seu elemento charneira.
Foi procurando salvaguardar essa posição que o PS, ao contrário do PPD, lutou pela não ostracização do PCP após o 25 de Novembro, e foi também procurando manter o sempre instável equilíbrio que uma posição de charneira implica que levou a liderança socialista a recusar, apesar dos vários apelos oriundos tanto do PPD como do PCP, qualquer entendimento para formar uma maioria parlamentar de suporte ao I Governo Constitucional. Foi também este posicionamento que conduziu ao acordo com o CDS que permitiu viabilizar o II Governo Constitucional, acordo esse que foi compensado à esquerda com a entrada no PS de um grupo de destacados ex-militantes do MES. Era a vitória de uma linha política que, apesar do acidentado percurso, tinha ultrapassado o processo revolucionário, contribuído para o sucesso da transição democrática e se iria revelar estruturante na afirmação da opção europeia e na consolidação de uma democracia pluralista de tipo ocidental.
Com o passar dos anos a retórica que tanto criticava os modelos da Europa de Leste como a social-democracia ocidental foi perdendo um vigor que nunca se verificou na prática política dos socialistas portugueses. De facto, o socialismo nunca foi posto na gaveta pelos socialistas pelo simples facto de que eles nunca abriram essa gaveta. Pelo contrário, ajudariam a recolher os fantasmas que tinham sido soltos após o 11 de Março que, recorde-se, foi nas primeiras horas interpretado pelo PS como o início do seu fim.
Paralelamente, o PS foi assimilando, num processo que se iniciou ainda antes do 25 de Abril, várias sensibilidades que se situavam à sua esquerda e não resistiram ao magnetismo exercido, passando a acompanhar a máxima do secretário-geral socialista: “a força das coisas tem muita força e condiciona necessariamente todas as opções”.
Quer isto dizer que o PS se afirmou e consolidou no panorama político português, graças à capacidade de manutenção como partido-charneira. Mas a fronteira não se situava fora do PS. A habilidade política de Soares manifestou-se, entre outros aspectos, na capacidade de fazer crescer o PS e de manter essa fronteira dentro do próprio partido, domesticando-a. A alternativa era um PS controlado pela restante esquerda.
A adesão à Comunidade Europeia, os anos de crescimento e de convergência com a Europa e o acesso ao poder contribuíram para esbater a linha que, no entanto, não desapareceu.
O longo processo de estagnação económica, a crise financeira portuguesa e a crise do Euro reavivaram essa fronteira. As regras impostas pelo Tratado Orçamental começaram a ser vistas por alguns sectores dentro do PS como um espartilho à política económica dos Estados membros e ensaiaram-se algumas aproximações aos partidos e movimentos que historicamente combateram a adesão de Portugal à Europa e ao Euro.
A campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2015 teve o condão de reavivar essa fronteira adormecida mas o actual líder do PS não demonstrou capacidade para utilizar a “pluralidade” do PS em benefício próprio, ou seja, dividir para reinar e consolidar a posição do PS como partido-charneira. Pelo contrário, contribuiu para acelerar um processo que pode ser fatal, não apenas para a sua liderança, mas para a manutenção do seu próprio partido nos moldes em que este foi construído.
Se no período pós-eleitoral conseguir gerir os conflitos internos e as pressões externas de modo a garantir que o PS continua a ser o partido-charneira do quadro partidário, revelará uma extraordinária habilidade política que andou desaparecida nos últimos meses. Caso seja afastado da liderança surgem três alternativas.
A primeira passará por uma nova liderança que procurará reconstruir a unidade do partido assegurando a sua diversidade interna, mantendo a fronteira dentro do PS. A segunda passará pela vitória de uma linha apostada em fazer pontes à esquerda e a terceira a constituirá a vitória de uma liderança empenhada no cumprimento das exigências impostas pela participação na moeda única. Em qualquer um destes cenários a maior dificuldade será assegurar a unidade do partido. Caso esse desafio não seja alcançado o que está em causa não é apenas a sobrevivência do PS nos moldes em que hoje o conhecemos. Abre-se assim a oportunidade para uma clarificação do posicionamento do PS e a consequente reformulação de todo o sistema partidário português que tem revelado grande estabilidade.
Voluntária ou involuntariamente António Costa tem grandes probabilidades de ficar na história.
David Castaño é historiador, autor do livro “Mário Soares e a Revolução” (Publicações Dom Quixote, 2013).