Portugal não é um país pobre por intervenção divina, porque foi amaldiçoado ou porque é castigado permanentemente por intempéries e fenómenos destrutivos. Na verdade, o país foi bafejado pela sorte no “sorteio das cadeiras”, cabendo-lhe um clima quase perfeito, no qual foram sendo criadas gerações de pessoas de inteligência rara, famosas pela capacidade de coexistir em paz e de beleza incontestável. Não, Portugal não é pobre por azar, é pobre porque merece ser pobre.
Não foi assim há tanto tempo que a questão da gratuitidade das propinas foi levantada pelo ministro da Ciência sobre quem caiu uma enxurrada de ataques, de que estaria a delapidar o tesouro para educar os filhos dos ricos, que os estudantes já pagam pouco e não é pelos 120 euros/mês que se resolve alguma coisa. À exceção de um muito tímido apoio do Presidente da República, a generalidade das entidades oficiais manteve-se caladinha deixando o ministro levar com a indignação popular por tamanha heresia, acabando ele próprio por negar que teria sugerido tal enormidade.
Para enquadrar a coisa, e dando como bom o desfecho de manter tudo como estava, estamos a falar de 308 489 estudantes universitários a frequentar o ensino universitário e politécnico que pagam, no máximo, 1 063,47€. Destes, 20% são bolseiros que, à partida, não pagam. Admitindo que todos os estabelecimentos de ensino cobram o valor máximo — descontando os bolseiros –, estamos a falar de 263 milhões de euros por ano. É, sem dúvida, muito dinheiro.
Curiosamente, os passes sociais são pagos com o mesmo dinheiro que as propinas da universidade. E o fim do mundo que constituía acabar com as propinas é, quando na forma de uma percentagem do valor do passe social, a maior conquista do povo desde que o Homo erectus passou a servir para tijolo. Talvez por meter “social” no nome ou porque as entidades oficiais estão muito mais habituadas a sentar-se num assento de uma viatura do que num assento de uma escola, aqueles que se calaram quando o ministro da Ciência e o Presidente da República queriam isentar os estudantes de pagar propinas, aparecem agora em todos os jornais de “sorriso Pepsodente” abanando um cartãozinho verde que nunca mais vão usar. Sorriso, esse, que vai custar 120 milhões de euros. Ou seja, quem paga a redução do preço dos passes são os estudantes universitários, porque se não se reduzisse o passe podiam passar-se as propinas para metade sem impacto nas contas do Estado.
Pornografias à parte, a verdade é que a economia é feita de opções. A única coisa que temos como certa é que vai crescer, isto é, que os 120 milhões de euros vão ser usados nalguma coisa. E é nas opções que se separam os países ricos dos países pobres. A surpresa que temos sempre que vemos países que não têm petróleo, praia, sol, nem pessoas como nós; países com produtos per capita que são o dobro do nosso, vem do facto de as nossas opções coletivas serem sempre baseadas em instintos básicos. Se reduzir 100 euros por mês a 300 mil estudantes era uma ignomínia, reduzir 20 euros a 1 milhão de utentes crescidos coloca-nos em níveis “ronaldescos” da civilização contemporânea. É que os 20 euros vêm “favorecer os pobres” e os 100 era um “benefício para os ricos”, ignorando que a educação é aquilo que alimenta toda a gente hoje e que quanto mais metermos na educação mais vamos beneficiar amanhã. Como que a ignorar que os 20 euros melhoram marginalmente a vida que as pessoas têm, mas os 100 euros trariam uma vida que as pessoas não têm. Podendo falar neste aspeto em nome de todos os gestores, prefiro de longe que as pessoas cheguem 5 minutos atrasadas do que com menos 3 anos de educação. Mas a nossa aposta, onde as nossas opções vão cair, é nos 5 minutos. Por isso, não me digam que não merecemos, porque merecemos.
Claro que me podem dizer que entre os 263 milhões de euros e os 120 milhões ainda vão 143 milhões, que não é a mesma coisa, que não se pode dizer que são os estudantes universitários que pagam a redução do passe. É verdade, porque alguém tem de pagar os 250 milhões que custa a RTP e, mais uma vez, caímos na questão das opções.
Já que os estudantes universitários pagam sensivelmente aquilo que custa a RTP, numa linha de opções favoráveis ao desenvolvimento de um país europeu civilizado que todos queremos ser, podíamos direcionar esses 250 milhões para o desenvolvimento daquilo que, no fundo, os estudantes pagam: conhecimento. Sim, essa seria a opção de um país rico. Já o país pobre resolve usar esse dinheiro para colocar em debate ciência e trambiquices pseudocientíficas como aconteceu recentemente em pleno prime-time da RTP1, num programa em que se sugeria que se equivalem e, pior, patrocinando essa sugestão.
Isto é tão absurdo como abrir uma ala homeopática no Hospital de S. João. É usar fundos públicos para destruir capital público. Nesse caso, o capital de credibilidade e de conhecimento que é construído durante décadas por profissionais sérios dedicados à prestação de um serviço público de saúde, baseado em conhecimento científico, seria destruído ao abrir uma ala dedicada à crendice. Aqueles que se chamam de doutores por serem médicos, passariam a coexistir com “doutorados” em medicinas alternativas, mestres em “buziologia” e, quem sabe, com os mais prestigiados pais de santo da região.
E aquilo que se assistiu na televisão do estado e que consome tantos fundos públicos como a abolição das propinas é, sob qualquer perspetiva, destruição de capital público. Mas se formos avaliar pelas redes sociais o resultado da coisa, os elogios ao programa são mais do que muitos e não são poucos os que dizem “os cientistas pensam que sabem tudo”.
Agora, nada disto foi imposto. É tudo escolha nossa. É opção atrás de opção que nos leva cada vez mais rapidamente para um país mais pobre. Os que se educam, esses, não vão ter problemas porque esses sabem onde está o valor. Não acham que água com açúcar tem “memória quântica”, não acreditam que os astros lhes governam a vida só porque nasceram em Novembro, nem dizem que Sociologia é conhecimento. Esses vão ser os ricos que nem sequer precisam de trabalhar para outros portugueses, podem perfeitamente trabalhar em qualquer sítio da Europa. Para os outros, aqueles que hoje festejam os 20 euros de redução do passe, provavelmente não haverá emprego para onde usarem o passe. Mas isso não deve ter problema porque devem morrer do cancro que tentaram curar com terapias alternativas.
O que me incomoda a sério, é o primarismo das opções. Redução de passes é bom porque é para os pobres. Propinas é mau porque é para os ricos. Serviço público é pôr as questões em debate, independentemente de metade do debate ser pura vigarice. Não há um esforço racional em perceber o que pode acrescentar capital que nos vai fazer ricos ou, por outro lado, aquilo que o destrói. E por isso, merecemos ser pobres. Pelo menos, merecemos ser mais pobres que os outros que fazem esse esforço. Mas como dizia a minha avó: pobretes, mas alegretes. Ora abanem lá os vossos passes verdinhos para a fotografia….
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador