Vivemos acontecimentos tenebrosos e históricos. Hoje a verdade penosa é a de que o mundo está perante a maior ameaça à ordem global, à definição territorial, à democracia europeia e, sobretudo, está numa guerra aberta de valores. Urge a defesa dos ideais que nos são estruturantes e do futuro que ambicionamos. Dir-se-á que sou louco, mas a verdade é que do conforto das nossas democracias ocidentais e da liberdade que demos por garantida ignorámos sinais que se vinham a acumular e que não só deveriam, mas exigiam ter sofrido uma resposta mais veemente e imediata. Talvez se julgue que de um derrube de avião com centenas de passageiros, da anexação da Crimeia, dos crimes contra a humanidade na Síria ou de um atentado químico em solo europeu não podia advir a tamanha barbárie levada a cabo pelo Kremlin contra um país independente e soberano. Não esqueçamos também as numerosas intervenções e solilóquios sobre a unidade histórica entre russos e ucranianos, a defesa de uma “Grande Rússia” ou o nunca esquecido e intrínseco desejo expansionista e imperialista que preenche Vladimir Putin de uma vontade perigosa de corrigir o fim da Guerra Fria e aquilo a que em tempos chamou a maior catástrofe geopolítica do século – a morte da União Soviética. O passado aparentemente nada ensinou, uma vez que a porta da Europa continuou escancarada para os amigos de Moscovo e o seu dinheiro – esse que criou teias de influência no coração de organismos europeus – e não só se manteve a dependência energética como inclusive se aumentou consideravelmente a mesma (com particular destaque para a dependência alemã a ser consubstanciada no tão falado Nord Stream2). Este colossal erro estratégico não tem agora outro futuro senão o da urgente remediação por via da reconfiguração da política de segurança e energética interna e externa dos estados-membros e da UE como um todo.
O contínuo escalar dos acontecimentos desde o despoletar da invasão gerou diferentes velocidades de resposta por parte dos líderes europeus que vêm constantemente a público com novos pacotes de sanções, mas ainda assim a veemência das mesmas nem sempre foi a esperada. De facto, as primeiras tíbias medidas não só pecaram por tardias como pareciam demonstrar um total desconhecimento sobre o oponente. Putin não é um político comum, nem sequer é equiparável ao que estamos acostumados a ver e por isso não podemos esperar o mesmo tipo de comportamento – é aliás na sua imprevisibilidade que reside o seu maior perigo. O ex-KGB é um estratega frio, calculista, poderoso e nacionalista que para além de se ter preparado por via de alianças a Oriente (acautelando assim determinadas sanções que já eram por si esperadas) crê na capacidade dissuasora das suas posições, dos argumentos históricos propagandistas que expõe interna e externamente, nas ameaças públicas e, claro, na enorme capacidade bélica e nuclear.
Em adição a tudo isto a dependência energética da Europa faria – e Putin sabia – com que os seus líderes perdessem demasiado tempo em tentativas de coordenação que aliassem medidas suficientemente sancionatórias para a Rússia e com reduzidos impactos na economia europeia. Ora tal padece de um problema logo na base – aliás em linha com o provérbio popular “Quem vai à guerra, dá e leva” – o de não ser possível impor medidas de tal ordem danosas para fazer Putin recuar sem que o Ocidente sofra também consequências (desengane-se quem julgar que este não foi um fator preponderante na demora de aplicações de sanções como a exclusão do sistema SWIFT). A Europa mostrou inicialmente que havia certos custos que não estava disposta a tomar, fazendo-se refém da sua dita grandeza moral e pacifista, em busca de uma solução de paz ao estilo de Chamberlain. Se isto não bastasse, muitos exortaram continuamente ao diálogo, à negociação e à diplomacia. Porém, se não é estrategicamente correto fechar a porta da diplomacia também é verdade que existe um limite para se ser tolerante.
O escalar da ofensiva militar e uma multidão por todo o mundo a exigir esforços redobrados fez com que os líderes tivessem forçosamente de agir de acordo com a vastíssima maioria da opinião pública (claro que mesmo perante este feroz e vil ataque há sempre uns quantos basbaques) e se era um dado à partida garantido o de que a NATO não poderia intervir em solo ucraniano (de modo a não originar um conflito nuclear à escala global, por mais que eventualmente achemos ser o mais humano) também é verdade, e Putin possivelmente não o esperava, que a NATO, a UE, os EUA e demais aliados do mundo livre e democrático mostraram uma união e esforço conjunto digno e a fazer jus aos ideais do Ocidente que, sejamos sinceros, precisavam de revitalização. Ora se é verdade que as sanções iniciais estavam aquém do expectável e do que a Ucrânia – na figura do seu estrondoso e carismático líder Volodymyr Zelensky – pediu, não é menos verdade que os últimos pacotes de sanções (com destaque ao financiamento militar à Ucrânia) são também um momento histórico e de viragem para a UE que deve ser aplaudido. Há, todavia, muito mais, para além daquilo que é visível, a acontecer. A guerra por detrás da guerra acontece também com batalhas comunicacionais, jogos de propaganda e uma frenética ciberguerra, tudo elementos que suportam inquestionavelmente que “a guerra é a continuação da política por outros meios” [Clausewitz, 1830].
O desfecho deste triste período de retrocesso civilizacional é incerto e coberto por inúmeras questões: quão longe está Putin disposto a ir? Poderá responder irracionalmente às sanções impostas? O que será da Ucrânia e dos ucranianos? Que Rússia teremos depois da guerra? Independentemente daquilo que julguemos ser a resposta a estas e demais questões, uma coisa temos como garantida: a mudança da ordem global. Impera que doravante a matriz condutora contra os ataques desferidos à democracia, liberdade e direitos humanos seja a de Churchill (permitam-me citar o original: “Victory at all costs. Victory in spite of all terrors. Victory, however long and hard the road may be, for without victory there is no survival”) e que por todos os meios possíveis defendamos a paz e livremo-nos de comportamentos xenófobos contra os cidadãos russos que também não compreendem a guerra, pois é aí que reside a nossa forma de estar, num humanismo que deve ser inabalável (como o de um ucraniano(a) que assiste e alimenta um jovem soldado russo que se entrega com medo por ter sido enviado para a guerra sem saber o propósito desta). A paz precisa de ser defendida e a Europa nada mais tem a fazer senão a total redefinição da sua política de defesa de modo a dissuadir quaisquer eventos semelhantes no futuro – nesta ou em outras geografias – uma vez que terá assim um respeito internacional que até à data não tem. Qualquer que seja o fim, uma coisa sabemos: a independência da Ucrânia e o direito a viver em democracia e liberdade é, e será sempre, inquestionável. O povo ucraniano já conquistou isso e muito mais. Aos líderes mundiais um apelo sentido: o sangue dos ucranianos está nas nossas mãos. Ajam. Usem todos os recursos possíveis e imaginários. Ao povo ucraniano: Slava Ukraini!