Li a notícia de que tinha sido rejeitado o nome de professora e conselheira Maria João Vaz Tomé para juíza do Tribunal Constitucional e que essa rejeição tinha sido saudada com fortes aplausos por vários deputados. Essa rejeição e esses aplausos nada tinham a ver com uma suposta incompetência ou inadequação para o exercício do cargo (o que ninguém poderia sequer questionar), mas apenas com a opinião manifestada pela candidata sobre o aborto.
Que declarações foram essas, que causam tão grave escândalo, como se de uma heresia ou uma blasfémia se tratasse?
Afirmou a candidata que a questão do enquadramento jurídico do aborto depende de um conflito entre a proteção constitucional da vida intrauterina, por um lado, e direitos da mulher, como o direito a dispor do seu corpo, por outro lado.
Maria João Vaz Tomé não disse nada que não tenha sido dito pelo próprio Tribunal Constitucional quando apreciou, nos seus acórdãos nºs 25/84, 85/85, 288/98 e 617/06 as sucessivas leis que conduziram ao atual regime jurídico do aborto.
Em todos esses acórdãos, o Tribunal nunca deixou de partir do pressuposto de que a vida humana intrauterina é protegida pelo artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, preceito que consagra o princípio da inviolabilidade da vida humana. Partindo desse pressuposto, analisou a questão do modo como se concretiza essa proteção: se se trata de um valor objetivo ou de um direito subjetivo e em que medida essa proteção se equipara, ou não, à da vida humana extrauterina. Prevalece a ideia de que se trata de uma proteção gradual, tanto mais intensa quanto mais nos aproximamos do nascimento.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a despenalização e legalização do aborto resulta da consideração de um conflito entre a proteção constitucional da vida intrauterina, por um lado, e a de outros direitos e valores constitucionalmente protegidos, por outro lado, e da ponderação relativa entre uma e outra dessas proteções. E foi isso mesmo (e nada mais) o que afirmou Maria João Vaz Tomé.
O Tribunal Constitucional avaliou essa ponderação no caso do sistema de indicações (seguido na primeira lei que despenalizou e legalizou o aborto com determinadas causas) e no caso do sistema de prazos (seguido na lei atualmente em vigor, que despenalizou e legalizou o aborto quando praticado nas primeiras dez semanas de gestação). É de esperar que o deva fazer também se uma nova lei vier alterar a ponderação subjacente ao regime atualmente vigente.
Podem questionar-se as conclusões a que chegou o Tribunal Constitucional ao admitir a ponderação subjacentes a essas leis e sua conformidade com o primordial princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição. É o que faz, por exemplo, Diogo Lorena Brito em A vida pré-natal na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Publicações da Universidade Católica, 2007. E foi esse o sentido de vários dos votos de vencido formulados nos referidos acórdãos.
Mas o que não encontra qualquer apoio na jurisprudência do Tribunal Constitucional é a negação de alguma forma de proteção da vida humana intrauterina, como se esta nem sequer existisse, não tivesse o atributo de vida humana, ou se confundisse com alguma parte do corpo da mulher (de resto, qualquer dessas conceções também não encontraria qualquer apoio em elementares dados da ciência). É, certamente, partindo dessas conceções que se vem defendendo a consagração do aborto como direito fundamental, direito ilimitado, como se de um simples direito da mulher a dispor de uma parte do seu corpo se tratasse, sem qualquer consideração pela vida humana intrauterina. Um direito que se sobreporia até ao direito à objeção de consciência consagrado no artigo 41.º, n.º 6, da nossa Constituição. Essa pretensão de consagrar o direito ao aborto como direito fundamental conduziu a uma recente alteração da Constituição francesa e a uma recente resolução do Parlamento Europeu. Mas não é essa, certamente, a perspetiva da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Maria João Vaz Tomé limitou-se a reproduzir o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional. É sabido que os que saudaram efusivamente a recusa da sua eleição para o Tribunal Constitucional negam qualquer forma de proteção da vida humana intrauterina e, por isso, já propuseram a consagração do direito ao aborto como direito fundamental, na linha dessa alteração da Constituição francesa e dessa resolução do Parlamento Europeu.
Recusar a eleição de uma juíza para o Tribunal Constitucional por esta ter declarado, na linha da jurisprudência desse Tribunal, que a vida humana intrauterina goza de proteção constitucional é uma forma inaceitável de desprezo pela Constituição e pela independência desse Tribunal. Acima do respeito pela Constituição e pela independência do Tribunal Constitucional, está uma agenda ideológica extremista a prosseguir a qualquer preço.
Já lá vai o tempo em que se invocava a tolerância para justificar a legalização do aborto em circunstâncias restritas e não como um bem a promover. Agora, assiste-se à promoção de uma agenda ideológica que nega qualquer forma de proteção da vida humana intrauterina. Quem se oponha a essa agenda ideológica, está excluído de cargos como o de juiz do Tribunal Constitucional, como se estivessem limitados os seus direitos de cidadania, é vítima de uma injusta discriminação que parece não indignar ninguém. Não se admite essa oposição. A tolerância já lá vai. Agora vigora a ditadura do pensamento único.