Pensar as questões humanas do sofrimento e do fim de vida numa perspectiva meramente política não deixa de ser redutor. É estranho que a gestão do sofrimento, em qualquer situação limite de doença, se tenha tornado numa apropriação política. A informação parcial que nos chega, sobre a despenalização da morte a pedido, pretende convencer-nos de que se trata de um enfrentamento entre as políticas da saúde e a religião. Mas não, na génese das questões está um conflito entre ciência e política.

Antes de mais, é necessário um breve esclarecimento relativo à ciência. O avanço científico das últimas décadas permitiu reorganizar as fronteiras cosmológicas, compreender melhor a estrutura da pessoa humana e o mundo que habitamos. No entanto, os físicos teóricos constataram, incluindo prémios Nobel, que não é possível ir mais além da ínfima porção conhecida do universo, que corresponde apenas a 4% de uma totalidade. É certo que os físicos alcançaram um conhecimento muito preciso da matéria à escala nano, subatómica, mas confrontam-se com a impossibilidade de aceder ao que está para além do universo conhecido. Falam-nos da existência de multiversos e da incompatibilidade entre estados da matéria. Depararam-se com uma imensidão cósmica brutal, à qual não têm acesso, que corresponde aos restantes 96%. Este condicionamento da matéria foi detetado no universo primitivo, um facto que alterou o percurso da sua evolução. Os físicos reconhecem que ultrapassar os limites científicos é o mesmo que entrar no domínio da metafísica, razão pela qual a grande maioria dos cientistas se tornou mais humilde e prudente quanto à formulação das teorias. Dizem-nos, que para além do limite dos 4% cessam todas as leis da física conhecidas, o que exigiria uma reforma total do pensamento, da linguagem e da própria natureza humana.

Deparam-se, também, com o enigma da consciência, de que modo a matéria se tornou consciente na sua evolução, associado ao desconhecimento do funcionamento completo do cérebro humano. Actualmente, os cientistas confrontam-se com um abismo de incertezas, que tem dado origem a uma crescente descrença na própria ciência. O astrofísico Stephen Hawking, na sua obra póstuma «Breves respostas às grandes perguntas», constata que há um desinvestimento nos apoios à investigação científica e que as ciências fundamentais, tal como a educação, sofreram um forte abalo devido à crise financeira global. Nesta linha está também o ensaio do neurocirurgião João Lobo Antunes «A Nova Medicina», publicado pela FFMS, em 2012, onde afirma: «Uma das características da ciência biomédica contemporânea é ser fundamentalmente desenvolvida por cientistas não médicos. O afastamento dos médicos da investigação, tem consequências nefastas quanto à aplicação prática do que se vai descobrindo» (p.68). Desde há muito que as humanidades e a ciência entraram em crise.

Assistimos, assim, à ascensão da bioinformática e da neuroengenharia que pretendem emular o cérebro humano completo, em sistemas computacionais, dando origem a supercomputadores. Estas máquinas teriam a função de orientar os humanos conduzindo-os para lá dos limites terrestres e cosmológicos. A sua linguagem é essencialmente algorítmica, limitada ao conhecimento matemático da estrutura da matéria conhecida pela ciência. Porém, pelo facto de se desconhecer a complexidade do funcionamento integral do cérebro humano, estes supercomputadores não existem ainda. No entanto, o investimento financeiro neste campo continua a ser exorbitante. Pretende-se desenvolver um mundo paralelo imersivo a três dimensões, em sistemas computacionais, que permitam transferir a identidade de cada ser humano, imortalizando sobretudo os mais aptos, e dar origem a uma nova realidade. Para tornar viáveis estes sistemas é necessário proceder à redução numérica da humanidade, devido à suposta sobrecarga demográfica, às alterações climáticas e à diminuição dos recursos naturais do planeta.

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É neste preciso ponto que a política se une à tecnologia de vanguarda (a Web Summit tem incidido muito nestes projectos), de modo a implementar mudanças profundas na sociedade. O investimento na modificação da pessoa humana está em curso como uma das prioridades das agendas políticas, forçando a humanidade a pensar e a agir segundo o padrão dos sistemas computorizados. A morte a pedido faz parte desta reprogramação da sociedade, que muitos políticos insistem levar a bom termo. Neste processo ideológico, designado por “evolução da evolução”, pretende-se limitar o ser humano a uma concepção antropológica desprovida de fundamento ontológico. A pessoa ficaria reduzida às dinâmicas do mundo físico e psíquico sem qualquer abertura à dimensão espiritual, consciente. Ser-lhe-ia obstruída a consciência, como centro metafísico, que integra todas as faculdades da pessoa: psíquicas e espirituais.

Face a isto, parece inglória qualquer intervenção em defesa da vida humana que tenha na base argumentos da Bioética, científicos, ou centrados nos direitos humanos. Perguntamo-nos, com alguma perplexidade, como é possível que esta política ideológica avance quando, segundo um recente manifesto da Federação Portuguesa Pela Vida, «todos os projetos (para a despenalização da morte a pedido) tiveram parecer negativo do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros e da Ordem dos Advogados». Quando, «tomaram posição contra a legalização da eutanásia a Associação Nacional de Cuidados Paliativos, a União das Misericórdias, os maiores grupos de saúde, o Grupo de Trabalho Inter-Religioso | Religiões-Saúde, todos os bastonários da Ordem dos Médicos, a maioria dos professores catedráticos de Direito Publico, dois Presidentes da República, para além de diversas personalidades de todos os sectores da sociedade. Nos últimos quatro anos a legalização da morte a pedido foi chumbada na Assembleia da República, considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e vetada pelo Presidente da República». Devemos analisar o problema a partir de dois factores importantes.

Primeiro, não se pode defender a vida humana só com argumentos antropológicos, porque o amplo conhecimento que os cientistas têm do ADN humano permite à bioengenharia modificar a natureza humana. No plano antropológico, as diferentes alternativas no modo de conceber a pessoa podem coexistir na sociedade, mas não esqueçamos que as modificações decorrem no limite dos 4% conhecidos da ciência. Ou seja, a descaracterização da pessoa humana, em curso, utiliza apenas a ínfima porção de uma matéria residual, corruptível, em declínio; na óptica de muitos físicos teóricos o mundo, tal como o conhecemos, tende a desaparecer. O segundo factor indica, que a defesa da vida humana deve situar-se na fundamentação ontológica, onde se descobre a terrível vacuidade de tais projectos tecnológicos. Pretender acrescentar à realidade algo sem substância, inexistente, é inglório. Fazer cópias virtuais do ser humano, manipuláveis, terá consequências dramáticas no funcionamento da sociedade. Neste sentido, é dramático verificar como são aprovadas leis, contra a vida humana, assentes numa liberdade individual fracassada que age sob coação das próprias leis.

É neste campo da liberdade que a fé cristã se inscreve. Pelo Baptismo, os cristãos recebem um novo estado da matéria — uma nova substância — designada como fé infusa. Na recepção do sacramento dá-se a mudança de um estado para o outro da matéria: da antiga para uma nova criação (cf. 2Cor 5, 17). O organismo espiritual humano fica potenciado para aceder e conhecer os 96% restantes da totalidade, desconhecida da ciência, e actuar com realismo e eficácia na vida terrena. Há, portanto, uma diferença abissal entre manter-se condicionado à matéria residual, que deixará de existir, ou poder franquear esses limites na solidez ontológica como ressuscitados. Isto diz respeito a toda a Humanidade, «porque a figura deste mundo passa» (1Cor 7, 32). É neste sentido que o Ressuscitado envia os seus discípulos: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, ensinai todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). Estas palavras supõem a incompatibilidade entre estados da matéria e a necessidade de um domínio do espírito a partir de uma realidade muito mais vasta.

O sofrimento e o fim de vida humanos confrontam-se com toda esta realidade. Ninguém pode afirmar, em consciência, muito menos os políticos, que a pessoa deixa de sofrer quando põe termo à vida. No momento da morte, mesmo que não seja crente, vai deparar-se – no mínimo! — com os 96% da realidade, que ultrapassa todas as medidas do mundo conhecido da Física. Pelo motivo da pessoa humana sobreviver à morte do corpo é decisivo ter desenvolvido o seu organismo espiritual, que lhe permite manter íntegra a sua identidade e franquear os limites da condição terrena. Diz-nos ainda João Lobo Antunes, que «a doença é um acontecimento espiritual que agarra o corpo e o espírito, e que a ambos perturba, e a visão redutora e mecanicista da medicina moderna não é satisfatória». Indica a necessidade de se desenvolver «uma ética de sentimentos onde cabem a decência, a amabilidade, a empatia, a devoção, o serviço, a generosidade, o altruísmo, o sacrifício, e – porque não mencioná-lo -, o amor ao próximo» (p. 62). O oposto das agendas políticas que pretendem privar o ser humano da sua liberdade, por ignorância: «Os documentários e filmes acerca da ciência chegam às massas, mas trata-se de uma comunicação unidireccional». Isto, dito por um dos grandes homens da ciência do século XX, Stephen Hawking. Porque tudo o que não for alicerçado a partir da visão mais vasta não tem poder de subsistência.