Basta fixar o olhar num écran de alta resolução de imagem para que o deslumbramento se apodere de nós. O hiper-realismo da imagem tecnológica que captamos induz-nos a entrar nessa mesma realidade. É difícil não nos sentirmos envolvidos e integrados. Interrogamo-nos sobre esta grande questão que é a ligação da natureza humana com a tecnologia. Ou seja, o facto de nos tornarmos consubstanciais à tecnologia. Desviando o olhar do painel percebemos porquê: o mundo que habitamos parece mais opaco e menos luminoso. Mesmo quando a luz solar lhe aviva o colorido as cores e os pormenores das coisas não têm a perfeição hiper-realista que a tecnologia é capaz de nos oferecer. Apesar de tudo, é do consenso geral que quando estamos envolvidos na natureza, diante de uma bela paisagem, por exemplo, os nossos sentidos corpóreos e espirituais descansam. São, porém, realidades diferentes. Comparando uma e outra reconhecemos que tem de haver um processo de purificação da matéria, que a tecnologia parece ter já resolvido. Basta olhar para o elevado número de pessoas, com as quais diariamente nos cruzamos, totalmente submergidas nos seus smartphones. Também os écrans de alta resolução de imagem se encontram por todo o lado: nas escolas, em casa, nos estabelecimentos comerciais, em lares de idosos, etc. Estes produzem uma quietude anestésica dos sentidos pela facilidade com que o nosso mundo psíquico reage ao poder das imagens.

Mas, face a este poder tecnológico, surgem muitas dúvidas e alertas como, por exemplo, na exposição «Evilution», de Bordalo II. Este genial artista alerta-nos para uma evolução mal conduzida, ao confrontar os visitantes com as toneladas de lixo que resultam da nossa desenfreada actividade quotidiana. Ao pôr em causa o sentido e a veracidade da evolução, também ele reconhece que tem de haver um processo de transformação e de purificação da matéria e consegue-o através da arte. Sobretudo, parece querer travar-nos com a sua consideração final: “O espanto e maravilha com que o homem olha e vive o falso habitat que criou para si adormeceram a característica que mais o diferencia de outras espécies, a sua consciência. A confortável apatia com que se move em massas sociais ditará a indiferença velada das suas ações e assim, o seu futuro. Não será assim?”

Não necessariamente, se olharmos para o gigantesco trabalho de reciclagem de lixo tecnológico que a empresa Ecomet Refining de Spino d’Adda, em Itália, leva a bom termo desde há vários anos. Recupera e refina os metais preciosos como o ouro, prata, paládio, entre outros, provenientes das toneladas de aparelhos electrónicos que são substituídos e deitados para o lixo anualmente. Embora numa escala diferente, Alberto Tosoni, director da empresa, realiza um trabalho semelhante ao de Bordalo II, a transformação do lixo numa renovada utilização. Ambos combatem o desperdício transfigurando a matéria e potenciando-a em função de uma realidade mais sustentável. O director da Ecomet tem vindo a estabelecer uma rede de contactos mundial com empresas comprometidas com o ambiente, interessadas na recuperação de lixo tecnológico. Um destes acordos foi feito recentemente com o Estado do Vaticano. A finalidade do acordo é a devolução de recursos que se destinam a todos aqueles que são escravizados e explorados na extração dos metais preciosos, em países onde a pobreza é clamorosa.

A própria ciência está apoiada pelos meios tecnológicos e investe neles, em larga escala, para obter um conhecimento preciso de todos os elementos que constituem a matéria. Para melhorar a nossa vida na Terra, ou, até mesmo, a possibilidade de recriar a vida humana. Paradoxalmente, como vimos, à custa de muitas vidas sacrificadas e da exploração exaustiva dos recursos do Planeta. Isto diz respeito, também, aos físicos teóricos e aos cosmólogos que nos surpreendem, cada vez mais, com as suas múltiplas teorias à cerca da constituição do Universo, na sua origem. Há décadas que observam a existência de algo mais através da potente tecnologia que os leva a perseguir o rasto da matéria primordial, impresso no Cosmos, e a ultrapassar os limites da Física. Admitem que para além destes limites deparam-se com a metafísica e com a religião. Dizem-nos que os fundamentos da Física, tal como a conhecemos, estão a ser abalados. Existe muito mais realidade para além daquela que nos é dado conhecer nos limites do nosso Universo. Quanto a isto, nada de novo. Já no século V, Santo Agostinho, no seu Tratado Literal do Génesis, falava de uma pré-história anterior a este Universo. Remete-nos para a existência de um princípio, de um início e de um começo, no plano da metafísica.

Questionamo-nos, então, pelo ser das coisas e o motivo pelo qual necessitamos da mediação tecnológica para ver aquilo que não captamos com tamanha precisão. Ou seja, sabemos que precisamos de uma mediação para estabelecer a ligação entre a física e a metafísica. Somos, porém, cada vez mais conscientes de que não é a tecnologia, com todo o seu desperdício, que o vai realizar. Esta vontade do ser humano de se ultrapassar a si mesmo, de reconhecer e inverter os seus erros, de constatar que há um limite para a sua autossuficiência – que a própria Natureza lhe impõe – é um passo para sair da região espectral, de tudo aquilo que tende à finitude e que não tem a existência em si mesmo. A humanidade está diante de um grande impasse, de uma oportunidade existencial, que é, como diz Bordalo II, fazer despertar a consciência e convertê-la a um outro plano de mediação.

Enquanto os físicos teóricos estão a apontar para a eternidade da matéria a fim de se manterem no domínio da Física, a fé cristã reconhece uma nova existência que é a fonte dos recursos que podemos utilizar na transformação do mundo. Aponta para um Princípio, tal como é descrito no Prólogo do Evangelho de S. João: “No princípio existia o Verbo; e o Verbo era Deus. Por Ele é que tudo começou a existir (…). O Verbo era a luz verdadeira que vindo a este mundo ilumina todo o homem.” A matéria é, portanto, uma criatura, não eterna, que no seu estado informe do início (Gn 1, 1-2) recebe as razões seminais de tudo o que Deus quis que viesse a existir no decorrer do espaço-tempo. Para os cristãos, a entrada de Deus na História da humanidade, o Natal, vem recapitular toda a existência humana e potenciar a matéria em ordem a uma nova Criação. E sendo os humanos ontologicamente criados à imagem deste Princípio sabemos que há uma Luz mais potente e perfeita, que supera o hiper-realismo da imagem tecnológica.

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