Estamos a celebrar em pleno a época dos santos populares. Um tempo de alegria e de festejos um pouco por toda a parte. Uns são festejados mais a Norte e outros mais a Sul, mas a devoção a Santo António, São João e São Pedro está muito enraizada por todo o País. Um dos exemplos é o Arraial de S. João que tem lugar, desde há dez anos, em Benfica, sendo organizado pela respetiva Junta de Freguesia e a Câmara Municipal de Lisboa. A duração dos festejos decorre ao longo de quatro dias com início quinta-feira, terminando no domingo. Acontece que são poucos os moradores que se encontram de férias nesse período de tempo, muitos trabalham e muitos outros estão em época de exames. Há ainda a referir os idosos e os doentes. Esta localidade de Benfica é composta por uma grande diversidade de pessoas habituadas a um certo silêncio e tranquilidade que, concretamente, o Bairro de Santa Cruz proporciona, até pela privilegiada característica da benéfica proximidade do Parque Silva Porto.

Chegadas as festas de São João, a pequena Alameda Padre Álvaro Proença tem sido o local eleito para instalar as “barraquinhas de comes e bebes” e dois palcos, sendo um deles de grandes dimensões próprias de um estádio. Segundo os organizadores, “a escolha da Alameda Padre Álvaro Proença para a realização do evento tem a ver com o facto de nesta Freguesia ser o local com a dimensão e centralidade necessária para acolher a imensidão de pessoas que querem vir ao Arraial”. Uma imensidão que corresponde a cerca de 20.000. Ao contrário dos seguidores do grande profeta, que foi São João Baptista, estes 20.000 não vêm para ouvir a voz daquele que pregava no deserto da Judeia o apelo à conversão, a “preparar os caminhos do Senhor e a endireitar as suas veredas” (Mt 3, 3). Não, nada disso. Vêm para comer e beber e para ouvirem os concertos de música popular; cada dia de Arraial tem o seu artista convidado num crescendo até à apoteose final, daquele que é considerado o melhor de todos. Também aqui há um grande contraste com a atitude de vida de São João Baptista: “João trazia um traje de pelos de camelo e um cinto de couro à volta da cintura; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Iam ter com ele os de Jerusalém, os de toda a Judeia e os da região do Jordão, e eram por ele baptizados no Jordão, confessando os seus pecados” (Mt 3, 4-6).

Sobrepondo-se a esta voz que clama no deserto a uma mudança de vida, tão necessária hoje face à crise ambiental, a Câmara Municipal de Lisboa criou uma cláusula no Decreto-Lei n.º9/2007, de 17 de Janeiro, para legislar o ruído. Esta Lei tem sido utilizada pela Junta de Freguesia de Benfica e pela PSP para legitimar a transgressão da intensidade do som permitida, face aos moradores que denunciam a irregularidade. De tal modo é ultrapassado o nível de som permitido pela lei que se torna indistinta a actuação dos intervenientes nos concertos, por muita qualidade que possam ter. Ou seja, é essencialmente ruído. É alarmante perceber que se criam leis que permitem o incumprimento das próprias leis, que são exigidas à maioria. Já em 2015, a então presidente da Junta justificava: “Estou bem consciente, enquanto Presidente da Junta de Freguesia de Benfica, que algumas decisões tomadas por esta Junta podem causar transtornos a algumas pessoas e que, com toda a justiça, têm o direito de reclamar junto de nós, por essas mesmas decisões. No entanto, e como tive oportunidade de escrever, o alcance social de um evento com a dimensão que o Arraial de Benfica tem, acaba por justificar, em nosso entender, a decisão de realizar este Arraial, no local referido”. As vantagens são, claramente, o uso do poder em proveito próprio, para os seus próprios interesses. Não visa o bem comum, no sentido do respeito pelos moradores, embora refira a necessidade de angariar fundos para Associações e Colectividades da Freguesia.

Desconhecemos a cláusula. Porque “o Regulamento Geral do Ruído foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 9/2007 e aplica-se a atividades ruidosas permanentes ou temporárias”, abrange “espetáculos, diversões, manifestações desportivas, feiras e mercados”. Proíbe actividades ruidosas entre as 23h e as 7h. Como pode, então, o actual Presidente da Junta continuar a argumentar o mesmo que a sua antecessora, em 2015? “Desde logo e no que diz respeito ao ruído, foi concedido a esta Junta, pela Câmara Municipal de Lisboa, a respectiva licença de ruído, perfeitamente enquadrada na legislação em vigor (Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro)”. Neste Arraial, os espectáculos de palco têm início a partir das 22.30h e prolongam-se até quase às 2h da madrugada. No entanto, a legislação em vigor informa que “o efeito da exposição ao ruído excessivo pode prejudicar a saúde humana com consequências que vão desde as perturbações do sono, mudanças de estado de humor, a diminuição da capacidade de concentração, diminuição do desempenho no trabalho ou na escola, alterações de comportamento, stress, cansaço, dores de cabeça”, entre outros. Acresce, que só a Câmara Municipal de Lisboa está autorizada a fazer as medições do nível de decibéis. Pelo menos foi a informação dada aos moradores, sendo que estes desconhecem o quanto está a ser ultrapassado, por não lhes ser facultada a informação, sofrem apenas os seus efeitos.

É neste contexto que as reclamações passam a uma acção de queixa crime, prevista na própria Lei, pelo motivo de penalizar a saúde e até mesmo a saúde pública; esta última, pelo excessivo consumo de álcool e de substâncias químicas nos Arraiais. A recente notícia sobre a interdição à “utilização de equipamentos sonoros e desenvolvimento de atividades geradoras de ruído que, nos termos da lei, possam causar incomodidade”, nas praias, refere a aplicação de pesadas multas aos infractores. Se durante o dia é proibida a agressão ao meio ambiente e ao descanso das pessoas, muito mais força terá a lei no que diz respeito ao horário nocturno. Resta apenas dizer que o Sr. Primeiro Ministro tem a sua morada, precisamente, nesta zona residencial.

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