Alguém diz que ler livros, de versos ou de prosa, serve para fazer de nós melhores pessoas. Pode fazer, mas não faz necessariamente; e por isso não pode servir para isso. Uma máquina de lavar roupa a que pode acontecer lavar roupa não é uma boa máquina de lavar roupa. Outras pessoas dizem que ler livros serve para perceber melhor as coisas. Também pode, mas nem sempre. Alguns de nós passaram a vida a ler e não perceberam nada a mais por causa disso. Um terceiro grupo diz que passamos a ser mais sensíveis à beleza, como quem desenvolve uma alergia ou apura um detector de incêndios. Não passamos, ou não passamos todos, ou não passamos sempre.

Não é claro ainda por cima que se possa saber para lá de qualquer dúvida que alguém que passou a vida a ler livros beneficiou dessas actividades. Não dispomos de testes fiáveis que determinem se, por causa disso, alguém ficou realmente melhor, ou adquiriu as opiniões certas, ou se extasiou de um modo mais cabal. Não podemos sequer confiar em comportamentos, gestos ou caras. Qualquer pessoa pode sem esforço aprender a fazer cara de extasiado, de cientista, ou aliás de boa pessoa. O comportamento de quem se extasia não é um critério fiável para distinguir quem não se extasia. É indubitável que houve muitas causas para nos termos tornado as melhores pessoas que hoje somos; mas seria insólito que nas seis horas imediatas à leitura de um bom romance todos tivéssemos desenvolvido um impulso irresistível para praticar o bem.

Parece no entanto exagerado dizer que não há relação nenhuma entre os livros que lemos e as coisas que fazemos. Fazer justiça a essa relação é porém muito difícil. Para a explicar, uma analogia que ocorre é com o caso da música. Há músicas, e frases musicais, que nos acompanham dias inteiros, quer quando estamos ocupados a praticar o mal quer quando estamos entretidos a sentir o belo. Cantamos em voz baixa, ou em voz alta (no banho), ou assobiamos. Se acontece à música ter palavras, repetimos as palavras sem necessariamente nos ocuparmos com o que querem dizer. Podemos até repetir as palavras numa língua que não falamos, ou que falamos mal.

Com versos passa-se uma coisa parecida. Uma pessoa pode repetir o verso “Que paz tranquila!” com satisfação e apreço, por exemplo sempre que se estende numa cadeira e tira os sapatos, ou sempre que a pessoa que estava ao seu lado finalmente se calou. Mas no poema em que aparece o verso “Que paz tranquila!” o autor (A. A. Soares de Passos, 1826-1860) não estava a exprimir o seu alívio mas a considerar as vantagens de passear à noite num cemitério; tal não nos terá ocorrido ao assobiar as palavras do poema que tão bem nos acompanha. Repetir com estima um verso é muitas vezes como repetir palavras que não percebemos.

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