Como um anão no fim de um dia de trabalho Camilo Pessanha (1867-1926) volta a casa e encontra tudo desarrumado. É esta a situação inicial de um dos seus poemas mais conhecidos, o soneto que começa por “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho.” Nas duas quadras faz um inventário pormenorizado dos estragos: lençóis rasgados, girassóis arrancados, uma mesa partida, lenha espalhada e vinho entornado. Ao mesmo tempo repete várias vezes a mesma pergunta: quem terá sido o responsável por todos esses desastres domésticos?
Temos a impressão reiterada de que, apesar de todas estas perguntas, Camilo Pessanha sabe muito bem quem lhe desarrumou a casa; mas nunca nos diz directamente quem foi. Uma possibilidade é a de não querer dizer aquilo que não obstante pretende dizer; outra, a de não conseguir dizer directamente aquilo que quer; outra ainda, a de que não quer dizer aquilo que diz. Haverá um elemento policial em tudo isto; mas como num poema não há provas independentes daquilo que lá se diz, temos que nos socorrer da subministração parcimoniosa que Pessanha faz da sua versão dos factos.
Em vez de nos comunicar quem acha que lhe virou tudo do avesso, Pessanha começa a segunda parte do soneto a falar com a mãe sobre assuntos aparentemente não relacionados com o incidente. Não se trata bem de uma conversa, porque a mãe já morreu e não responde. Parece que no entanto se move; só isso explica a apóstrofe maravilhosa de Pessanha: “Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova.” É o verso mais incompreensível do poema, mas é também o mais cómico: Camilo Pessanha, exageradamente famoso por ter escrito coisas plácidas com ar chinês, é sempre melhor a exprimir o que verdadeiramente o alarma através de melodramas de altas temperaturas. São porém sempre melodramas sem informações úteis. Não nos é explicado nada, e decerto não aqui os meios que a mãe usou para se locomover.
Apesar de nunca chegarmos a conhecer os pormenores logísticos, não parece haver dúvidas de que Pessanha está convencido de que foi a mãe quem lhe desorganizou a vida doméstica. O soneto, característico pela sua rispidez, conclui com uma ordem à mãe: “Não venhas mais ao lar.” Ao contrário dos anões, que acabam sempre por fazer as pazes com quem lhes mexe nas coisas, Camilo Pessanha parece ter razões para continuar a temer essa mãe morta, que insiste em aparecer-lhe em casa, e cujos serviços domésticos consistiram em pôr tudo de pantanas e em sujar-lhe a cama. Em 1915 Pessoa escreveu-lhe a pedir vários poemas para publicação. Menciona também o poema de Pessanha que mais admira, um soneto com o título “Regresso ao lar,” cujo assunto “infelizmente, inibe . . . que ele se publique”. Não sabemos ao certo se seria este; e Pessanha nunca respondeu à carta.