Dentro do tema das portagens e do escandaloso esbulho fiscal a que os contribuintes portugueses estão sujeitos com a cobrança coerciva feita pelo “senhor do fraque”, adiante designado por Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), parece estar esquecido que este organismo pertence à esfera pública e que é tutelado pelo Ministério das Finanças.

A AT tem como principal função, e dela não se deve desviar, tudo o que diga respeito a impostos tais como:

  • Assegurar a respetiva liquidação e cobrança.
  • Exercer a ação de inspeção tributária, prevenindo e combatendo a fraude e evasão fiscais.
  • Exercer a ação de justiça tributária e assegurar a representação da Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais.
  • Informar os particulares sobre as respectivas obrigações fiscais e apoiá-los no cumprimento.

Para além da sua missão, que é verdadeiramente pública, a Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, explanada no Decreto-Lei n.º 118/2011, parece também ser claro que foi dado poder a este organismo através da Lei 25/2006, de 30 junho, fazendo aprovar o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de infra-estruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem.

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O artigo 15º do diploma determina que “o serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente de contraordenação é competente para a instauração e instrução dos processos de contraordenação a que se refere a presente lei, bem como para aplicação das respetivas coimas”.

Até aqui, todos percebemos que a AT está com toda a legitimidade legal para proceder à cobrança das taxas provenientes de portagens.

Como as dívidas de portagens seguem a tramitação da execução fiscal, a lei dispõe de norma específica, e nesse sentido dispõe o artigo 17.º-A da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, “que compete à AT, nos termos do CPPT, promover a cobrança coerciva dos créditos relativos à taxa de portagem, dos custos administrativos e dos juros de mora devidos, bem como da coima e respetivos encargos”.

Ficando claro que verdadeiramente a AT está revestida pela lei que lhe confere toda a legitimidade para proceder ao esbulho fiscal proveniente das taxas portagens, é o momento de perceber a questão essencial desta tão antiga polémica que não há maneira de ser resolvida.

Qual o tipo de entidades que geram receitas provenientes de taxas de portagens?Exactamente, são entidades privadas, empresas como tantas outras.

E é aqui que todo este processo se torna estranho, o que nos remete para a já tão discutida questão de saber por que razão um organismo público cobra dívidas de entidades privadas.

Nunca a AT esclareceu cabalmente a questão remetendo para a lei que lhe dá esse poder, toda e qualquer dúvida que esta problemática possa suscitar.

Mas esse facto, por si só, pode não ser suficiente e de facto não o é.

Há que analisar se de alguma forma a lei que permite a cobrança de taxas de portagens fere algum preceito constitucional.

Há uma certa corrente doutrinária, à qual também pertenço, que parece defender que de alguma forma,o acto de cobrança coerciva de taxas em que a origem da receita é pertença de entidades privadas é inconstitucional. Ao que parece, a Constituição da República Portuguesa dá-nos claramente razão.

O sistema financeiro e fiscal do Estado, fazendo parte integrante da Organização Económica, está explanado na Constituição da República Portuguesa.

O seu Artigo 103. não poderia ser mais claro:

1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

Isto significa que o nosso sistema fiscal, da qual é parte integrante a AT, está desenhado essencialmente para garantir através dos nossos impostos a manutenção de toda a despesa pública no quadro das suas competências constitucionais.

Coisa distinta, é existir entidades privadas que se apropriem da função da AT com vista à satisfação, não das necessidades financeiras do estado, mas sim delas mesmo.

No fundo, é o contribuinte que paga com o dinheiro dos seus impostos a manutenção clara e objetiva desta forma de cobrança, na medida em que todos os meios humanos e informáticos de que a AT dispõe são activos de todos de nós que devem estar ao serviço exclusivamente dos interesses do estado e não na satisfação de receita de privados que na verdade é aquilo a que assistimos.

Fácil então será concluir que, sendo a AT um organismo público tutelado pelo Ministério das Financas, que dá orientações aos mais variados organismos de acordo com aquilo que é o objetivo único e central do nosso sistema fiscal, não parece que uma qualquer empresa privada se possa aproveitar das competências da AT e dos seus meios, quer técnicas quer humanos, para satisfação dos seus créditos.

Assistimos por isso a um claro abuso que o legislador, sabe-se lá por que razão, permitiu.

Se por um lado é verdade que a AT pode e tem poder “legal “ para em nome do interesse privado actuar contra o contribuinte, por outro parece não restar dúvidas de que, para além deste organismo estar a extrapolar as suas funções, fazendo o que não devia, faz com isto nascer uma clara violação da Constituição da República Portuguesa. Não está nem pode estar a AT ao serviço de uma empresa privada para que esta se possa valer do direito a ser ressarcida de um serviço que foi prestado.

O âmbito legal e o objetivo concreto deste organismo público é exclusivo do interesse público, e toda e qualquer norma que vá no sentido contrário à natureza primária da AT e dos seus pressupostos não pode valer no nosso ordenamento jurídico.

Se assim não for, resta-nos uma só pergunta: por que razão não é permito a uma entidade privada socorrer-se de igual forma da AT para a satisfação dos seus créditos tal como as empresas que exploram as autoestradas?