No espaço temporal de uma só semana, Paulo Núncio lançou na campanha eleitoral a possibilidade de um novo referendo à interrupção voluntária da gravidez com vista à reversão da atual lei, e em França o aborto foi inscrito na Constituição.

No primeiro caso, Luís Montenegro falou em “assunto arrumado”, garantiu que não iria propor nenhuma iniciativa legislativa nesse domínio, sendo seguido por todos os partidos com assento parlamentar, incluindo o Chega – o único partido donde se poderia esperar um repto positivo a Núncio – cujo líder afirmou que a “sociedade portuguesa não deve voltar a referendar e voltar a criar uma penalização”.

No segundo caso, é impressionante a expressividade da votação. Dos 852 parlamentares, foram 780 – incluindo Marine Le Pen – os votantes favoráveis da consagração constitucional de que “a lei determinará as condições em que é exercida a liberdade garantida à mulher de recorrer à interrupção voluntária da gravidez”. Numa França altamente polarizada, não deixa de ser curioso que são os antigos temas fraturantes a unir o país.

No entanto, quero deixar uma cautela inicial. O objetivo deste artigo não é discutir a moralidade do aborto. No caso da Igreja Católica a posição é inequívoca e inegociável. O que se pretende é procurar analisar o que estes dados significam, inclusive para a Igreja. Que isso fique claro.

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Neste sentido, há um dado particularmente relevante. Em 2007, aquando do último referendo sobre o aborto, dos 19 grupos de cidadãos que participaram na campanha, 14 eram contra de legalização da IVG. Essa disparidade era, também, numérica e mediática: os movimentos contra a despenalização tinham mais participação e mais visibilidade mediática (se em 19 grupos com tempos de antena, 14 são pelo “não” ao aborto é fácil de perceber porquê). Mas passados 17 anos somos obrigados a concluir que algo mudou. Em 2024, numas eleições em que não é, de todo, previsível que novos partidos consigam um lugar no hemiciclo, a temática do aborto é um não assunto. É caso para perguntar, o que aconteceu desde 2007 para que um referendo onde “sim” e “não”, tiveram votações de 59,25% e 40,75% respetivamente – ou seja, um resultado que indicava uma fratura clara da sociedade portuguesa – se tivesse esvaido.

Ora, desde logo, há duas conclusões que podem ser tiradas. A primeira é o erro de associar o “declínio do ocidente” com o aumento da migração e o triunfo da ditadura do relativismo. Em Portugal, como em França, não foram os fluxos migratórios que tornaram a temática da IVG um assunto arrumado. E ao redor da Europa não foi a tendência mais “conservadora” dos eleitorados – geralmente desconfiados da “ideologia de género”, programaticamente sensíveis às políticas de natalidade e promotores dos “valores tradicionais” – que fomentou reversões na lei do aborto. Se tal tivesse acontecido, o resultado das últimas presidenciais francesas, que deu a Emmanuel Macron 58,54% dos votos e a Marine Le Pen 41,46%, teriam uma relação com a votação decorrida nesta segunda-feira.

A segunda está mais ligada à vida interna da Igreja. Tem sido frequente a tese de que a Igreja enfrenta uma crise de credibilidade. Um inverno gerado pela pandemia, pela crise dos abusos sexuais de menores, a denominada “falta de vocações” ou pelas dificuldades e escândalos financeiros. No entanto, a inexistência de qualquer relação destes fatores com as recentes notícias relativas ao aborto, mostra que a situação atual da Igreja é bem mais extensa que uma, mesmo que grave, crise reputacional. Aborto e eutanásia são assuntos fundamentais da presença da Igreja no espaço público e ocupam um lugar central na moralidade cristã, mas ela parece já não ser traduzida nas propostas partidárias, e isso deriva da sua parca expressão eleitoral. Durante largo tempo, convenceu-se, em alguns setores, que o voto católico seria, preponderantemente, em partidos com propostas contra o aborto e a eutanásia. Se assim fosse, em 2024, havíamos chegado a um grandioso impasse. A verdade é que, para muitos, a temática do aborto e da eutanásia era a última praça-forte no campo de batalha.

Mais que um sentimento de derrota, o que é evidente é uma sensação de deslocação. E sobretudo de deslocação interna. Não há dados que confirmem uma exacerbada fuga das igrejas. Os cristãos parecem é ser tendencialmente e crescentemente mais diferentes do cristão militante e modelo. Um exemplo recente disso mesmo é o recurso à contraceção. Embora a doutrina clássica da Igreja seja uma – e até amplamente satirizada – isso não impede que, hoje em dia, o recurso a métodos contracetivos seja generalizado, e sem que seja sequer imaginável um retrocesso nesse nível.

No entanto, não consigo comungar da ideia de que isto simboliza uma simultânea dissolução da moralidade e da Igreja, tal como acredito ser pouco evangélico a tribalização da mesma, entrincheirando os que pensam como nós em contraponto, mais ou menos bélico, com os demais. Talvez os dois grandes desafios sejam, por um lado, a experiência de uma nova dimensão da catolicidade – sem que isto signifique uma “alteração doutrinal” – e, por outro, a necessidade do cristianismo conseguir fermentar outros temas e outros ambientes, que não só os da moral sexual.