Ter boas razões não é condição indispensável para se sair vencedor, nem na política, nem na guerra – as duas grandes extremidades das relações humanas. A política vive de promessas, de publicidade, de máscaras. Transforma-se a pedido das circunstâncias. Diz-se o que for necessário para suscitar uma sensação de boa-vontade e ganhar votos. Daí a profusão partidária de “consultores”, de “especialistas” em “comunicação”.

A guerra, por sua vez, vive de ameaças, transformando-se ela mesma na própria ameaça na exacta medida em que se prolongar. A continuação da guerra agudiza os antagonismos, dificultando qualquer reversão de comportamentos. O recurso ao expediente nuclear, por exemplo, tanto acentua a intensidade da ameaça (iminência da catástrofe), como justifica a continuação da guerra pela guerra, radicalizando a agressão.

A guerra e a política têm os seus “corpos-doutrinários”. Neste caso, títulos do género “Como ganhar eleições” existem desde que o mundo é mundo. No caso da guerra, o título mais influente, ao longo de pelo menos todo o século XX, é sem dúvida Da Guerra, obra inacabada, publicada postumamente (1832), escrita por Carl von Clausewitz, militar prussiano.

Representa-se, figurativamente, pelo aforismo segundo o qual «a guerra é a continuação da política por outros meios» – uma sua sinédoque. Afirma-se o primado da política sobre a guerra. Significa que a política poderia sempre conter, regular ou suster a violência da guerra. Não haveria guerra que não fosse mediada política e racionalmente.

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Em vigor de forma tal que Julien Freund, um dos principais pensadores políticos na segunda metade do século passado, chega mesmo a apelidar de «fatuidade» qualquer pretensão de acrescentar algo inédito ou novo acerca do fenómeno bélico. Tudo havia sido dito. Não é o que pensou René Girard, ao contactar, casualmente, com a obra do general prussiano.

Girard, teórico da cultura (formação em história arquivística, professor de crítica literária), denominado, pelos seus pares, como «o novo Darwin das ciências humanas» e «o equivalente da mecânica newtoniana na psicologia», confessa ter ficado impressionado com a leitura da obra de Clausewitz, que classifica como «livro apocalíptico», ao «avançar a possibilidade real do fim da Europa, do mundo ocidental e do mundo como um todo».

Propor-se-á, então, resgatar Clausewitz da interpretação «iluminista», dominante, contrapondo a grande irracionalidade da escalada aos extremos, que o general prussiano vira igualmente como princípio implacável da realidade. Levando mais longe, desta maneira, «a lógica apocalíptica» entrevista por Raymond Aron, no livro Penser la guerre, Clausewitz (1976).

Girard decidiria mesmo «terminar» Da Guerra, escrevendo, para o efeito, Achever Clausewitz (2007). Dedica especial atenção ao capítulo no qual Clausewitz, consciente ou inconscientemente, parecera ter hesitado, ou abster-se, «não considerando as consequências» da «escalada aos extremos», que prognostica para os acontecimentos da guerra.

Dissera, o general prussiano que a guerra é comparável a um duelo («luta entre dois») em larga escala, «um acto de força para obrigar o inimigo a fazer a nossa vontade»; que ambos os contendores têm uma intenção semelhante, levar o seu oponente (rival) ao extremo. E que, portanto, «a guerra é um acto de violência, não havendo limites para a manifestação dessa violência».

Inspirado pelo romance (Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoievski, Proust), mais tarde pelo teatro de Shakespeare e pelas mitologias das grandes civilizações, Girard vê na descrição de Clausewitz o exemplo acabado de um conflito mimético, conflito que tem por base a imitação desejante e as rivalidades fratricidas que nela se geram.

Clausewitz apresenta-se-lhe como um exemplo de todos nós. Movemo-nos por desejos, sem excepções. E desejamos por imitação. Imitamos os desejos uns dos outros e, por isso, estamos de algum modo destinados à conflitualidade, que ele nomeia como «rivalidade mimética». Processo algo afim de mecanismos biológicos. Tal como na biologia há mecanismos de retroacção positiva que podem conduzir à morte, também no interior das relações humanas existem rivalidades que, contagiando e em crescendo, podem tornar-se homicidas, levando à vingança em escalada de represálias até aos extremos, conjugando, nessa escalada, todas as operações do verbo matar.

A questão de fundo é sempre e apenas a das relações humanas. Geram-se rivalidades muito finas, subtis, «subterrâneas» – as piores. Não significa que sejamos todos homicidas em potência. Nem toda a rivalidade deriva para a confrontação homicida, só aquela em que a imitação interfere directamente entre os parceiros (rivais). Neste caso, a intensidade do mimetismo tende a exasperar as rivalidades, indo ao ponto de fazer “desaparecer” o objecto que separara os indivíduos. Rivalidade “pura”, “purificada” de mediações exteriores. Os rivais tornam-se um para o outro o seu modelo-obstáculo, aquele que é preciso vencer e absorver.

Nascem assim o ódio, a hostilidade e o ressentimento, onde predomina o princípio exacerbado da acusação. Defendo-me, acusando o outro. O acusador defende-se, agredindo, acusando quem ele próprio agride. Gera-se uma reciprocidade violenta. A agressão coincide com a resposta à agressão. Emerge em crescendo uma hostilidade, universalizada no axioma de Hobbes, «a guerra de todos contra todos», fonte de violência indistinta e homogénea, o paroxismo da violência. Vive-se uma «crise mimética» que importa resolver, sob pena de a humanidade se desagregar e deixar de existir. Resolve-se criando alianças contra inimigos comuns, bodes expiatórios (judeus, nazis, ciganos, imigrantes, etc.). A violência é dirigida de todos contra uma vítima («guerra de todos contra um»), tornando-se distinta, organizada, singularizada. Restaura-se a ordem social que havia sido quebrada. Os indivíduos entendem-se muito facilmente quando odeiam as mesmas coisas.

É também isto que Clausewitz nos diz, através da relação que estabelece com Napoleão – o seu bode expiatório. «Bonaparte», como preferencialmente ele nomeia Napoleão, representa simultaneamente o papel de modelo e o papel de obstáculo (modelo-obstáculo, contra-modelo). Napoleão é o «deus da guerra», por um lado, e o «inimigo a abater», por outro lado. Ao mesmo tempo que encarna o ressentimento produzido contra a França, representa o verdadeiro espírito de vingança que deve animar o autêntico defensor da guerra, a guerra no sentido mais forte do termo.

Venerando-o e odiando-o, Clausewitz desenvolve por Napoleão uma «paixão venenosa». Diz-se que o destino nos prega partidas. Terá sucedido isso a Clausewitz, em 1806, ano da batalha de Iena e na qual a Prússia sofre uma catastrófica derrota imposta pelas forças napoleónicas («uma das vitórias mais rápidas de Napoleão»). Orgulhoso que estivera, como todos os seus colegas, do poderio recente do seu país, consideraria essa derrota um absoluto desastre. Tornar-se-lhe-ia mesmo insuportável, um traumatismo. Reavivando-lhe as memórias da derrota-humilhação sofrida na batalha de Valmy, em Setembro de 1792, onde fora porta-bandeira, integrando as tropas do duque de Brunswick (teria cerca de 12 anos).

A questão emocional, jamais o abandonaria. Depois de uma estadia em França (fora capturado em Iena) e tendo recusado a aliança proposta pelo próprio Napoleão ao rei prussiano, Frederico-Guilherme III, que a aceitou, desertou para a Rússia, juntando-se ao exército que travará uma guerra decisiva contra as tropas napoleónicas – a famosa campanha de 1812.

Reingressando no exército prussiano, continuará a ser visceralmente napoleónico e anti-napoleónico. Da Guerra, cuja redacção iniciará pouco depois, é um espelho da sua época. Responde a Napoleão, configurando um programa através do qual impõe mimeticamente a presença do seu país, a Prússia e, brevemente, da Alemanha unificada. A rivalidade franco-alemã, eixo das relações europeias e mundiais, replicará, durante cerca de século e meio, a rivalidade mimética Clausewitz versus Napoleão. Em proporções crescentemente incomparáveis.

Autores como Bergson, Durkheim, Péguy acabariam por ver no ressentimento alimentado por Clausewitz um dos focos de inspiração do pangermanismo. O ressentimento contra a França ficara patente particularmente no “horror de Verdun” (onde a lei da subida aos extremos violou todos os códigos da guerra) e sobretudo depois do Tratado de Versalhes (são destinadas tropas francesas para obrigar o cumprimento das cláusulas estabelecidas no tratado). O próprio Hitler, a seguir à invasão da Renânia (1936), levaria consigo um exemplar de Da Guerra, que pedira aos seus oficiais.

Tudo começa de algum modo em Valmy – é na infância que tudo começa. Lembre-se que Clausewitz coincidiu aí com Goethe. No que ele viu como humilhação (o recuo das forças prussianas), Goethe vê esperança: «A partir de hoje, deste lugar e desta data, começa uma nova era na história do mundo». Representam duas direcções na cultura alemã. Venceu manifestamente a do primeiro, pelo menos por todo o século seguinte.

Perante a situação actual, é urgente voltar a ler Clausewitz. Mas não para justificar politicamente a guerra. O general prussiano testemunha, em primeiríssimo lugar, a impotência e o fracasso da política para conter o crescimento recíproco, mimético, da violência, ou seja, a subida da guerra aos extremos. Uma coisa é o mal, outra coisa é a origem do mal. E é da origem do mal que ele sobretudo nos fala. Faleceu em 1831, presenciou guerras entre Estados e viveu o Congresso de Viena, em 1815. Desde então, paradoxalmente, a violência tornou-se irrefreável, assiste-se a uma escalada contínua aos extremos. A violência, longe de criar sentido, apenas ocasiona mais violência.

O que têm sido as guerras senão conflitos onde domina o princípio exacerbado da acusação? – pergunta René Girard. É impossível reverter os comportamentos miméticos em actos responsáveis sem uma inversão de sentido, sem um “virar do avesso” daquilo que estrutura e serve de justificação às relações humanas, dos indivíduos às nações. Uma “revolução no modo de pensar”, como era, em registo filosófico, o programa de Kant.

Não estamos aqui ainda, manifestamente, apesar da iminência do apocalipse. O conflito mimético é mais forte do que nunca. Vivemos debaixo do poder dos extremos. No sossego da calmaria próxima. Falta-nos a consciência de uma catástrofe iminente. A falha política tornou-se o problema político maior na actualidade. Ficando «a política para trás, a raiva fica fora de qualquer controlo racional», sintetiza René Girard. É o espírito de vingança, a redundância do Eu, a reciprocidade mimética, não a moderação, o equilíbrio ou a prudência, a antecipar por inteiro os nossos comportamentos. Querer a paz, mantendo a fé na violência, é o mesmo que acelerar a escalada aos extemos. É com uma guerra civil da humanidade que nos defrontamos.