Acompanhei nos últimos dias a convenção do Partido Democrata com curiosidade. Não porque esperava aprender alguma coisa de novo. Raramente alteramos as nossas opiniões políticas ou ficamos a conhecer melhor as propostas políticas de um partido numa convenção partidária moderna. Nem sequer ficamos a conhecer melhor os candidatos, já que é difícil distinguir aquilo que é encenado daquilo que é real.

As convenções partidárias começaram por ser congressos onde realmente as várias delegações estaduais se pronunciavam e negociavam qual seria o candidato do partido, sem se saber à partida quem ganharia (contested conventions, ou convenções disputadas, na linguagem política norte-americana). Hoje, com a proliferação das primárias nos vários estados para a selecção dos candidatos (ou no caso “especial” de Kamala Harris em que mais ninguém apareceu para disputar a nomeação com ela), já não há surpresas em relação ao que sairá da convenção. O próprio momento da votação é meramente “uma celebração”, já que o voto oficial é feito antes da convenção começar. As convenções são, por isso, um espectáculo para entusiasmar os eleitores que já simpatizam com o partido e concordam com a sua visão do mundo. São quatro dias de discursos e momentos produzidos para gerar afeição humana e televisiva com os participantes. Nos últimos dias, lembrei-me várias vezes da Eurovisão, de concertos de Beyoncé ou Taylor Swift, de eventos onde oradores enchem estádios para falar das suas “experiências de vida”, megaproduções modernas de igrejas evangélicas norte-americanas, ou de uma final do Superbowl.

A convenção Democrata foi, acima de tudo, um espectáculo para entreter e dar prazer a quem já gosta daqueles protagonistas e daquelas ideias. Um espectáculo ultra-produzido, com música, cor, efeitos especiais, adereços, vídeos que parecem produções cinematográficas, estrelas da cultura, testemunhos pessoais e familiares. Ao invés de políticas públicas e propostas políticas, os discursos enfatizam histórias afectivas, narrativas simbólicas e expressões que sinalizam uma identificação com os valores do partido e do movimento. Michelle e Barack Obama são, na sua essência, estrelas pop. Não pelo que dizem – afinal de contas, aquilo que dizem não é assim tão diferente, no essencial, daquilo que quase todos os outros democratas dizem – mas pelo que representam, a sua aura, as emoções que despertam num certo grupo de eleitores, que se identifica socialmente com eles e quer viver no mundo deles.

Numa palavra, a convenção e a campanha de Kamala Harris até ao momento foi quase exclusivamente baseada em vibes – numa atmosfera emocional e energia positivas, capaz de entusiasmar alguns (mas não todos) e de gerar cobertura positiva na imprensa e nas redes sociais. No que toca a políticas públicas, Harris ainda não divulgou propostas concretas e relativamente detalhadas, particularmente no que toca à economia e à imigração. Em quase todos os discursos, menciona que fará intervenções nas áreas da saúde, pobreza infantil, parentalidade e cuidado de crianças pequenas. Informa-nos também sobre os valores mais abstratos que promete seguir na sua governação e feitura de políticas públicas: mobilidade social, justiça social e económica, apoio aos menos afortunados, igualdade entre sexos e raças. Mas estes valores abstratos, tantas vezes afirmados por ela e tantos outros com expressões que são chavões, não nos informam de propostas concretas, nem da sua competência para as levar a bom porto. Uma boa governação não é apenas um constante apagar de fogos ou uma gestão corrente do dia-a-dia por alguém com quem simpatizamos e tendemos a concordar em termos genéricos. Uma boa governação tem uma agenda própria e capacidade de iniciativa e mudança políticas. Uma boa candidata não pode ser apenas uma candidata genérica que não se chama Donald Trump. Tem de mostrar algo mais. Até agora, Harris tem sido uma candidata Democrata genérica, com talento oratório e estético, mas sem conteúdo e substância. Serão a oposição a Trump, a sua imagem renovada mas genérica, e as expressões simbólicas suficientes para ganhar uma eleição?

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Naturalmente, Donald Trump também não divulgou as suas propostas políticas nem se comprometeu de forma séria em áreas concretas. Dizer que se “acaba com a inflação no primeiro dia” não é, evidentemente, sério. Trump repudiou a agenda detalhada do Project 2025, produzido pela Heritage Foundation, embora este tenha sido apoiado por muitos indivíduos próximos de si. Se a esta indefinição acrescentarmos a tendência para a hipérbole e a volatilidade, Trump também não se distingue pelo conteúdo das suas políticas públicas. Numa formulação de 2016 que ficou famosa, os progressistas encararam Donald Trump (em 2016) de forma literal, mas não de forma séria. Ao invés, os apoiantes de Donald Trump encaram-no de forma séria, mas não literal. O que interessa é o simbolismo de Trump, os valores gerais que apresenta, as suas vibes.

Uma campanha baseada nas expressões simbólicas, nas vibes e nas reacções instintivas de cada eleitor é uma campanha – e uma política – baseada em emoções. Há um longo historial de usar emoções para fins políticos – o medo, o ressentimento, a esperança e a desesperança, o ódio e a euforia. Em doses elevadas, o resultado pode ser catastrófico. Em doses mais moderadas, as emoções não são insignificantes e, frequentemente, contêm informação mais profunda. Não é raro que uma emoção seja uma reacção rápida que tem em conta os nossos valores e opiniões reais, que devem ser consideradas numa decisão. É até frequente que uma reacção emotiva acabe por confluir numa escolha semelhante à que faríamos depois de uma reflexão ponderada.

No entanto, uma política baseada apenas em emoções e simbolismos genéricos fica muito aquém de conseguir propor e gerar apoio popular para novas soluções inteligentes aos problemas económicos e sociais complexos que os eleitores querem ver resolvidos. Fica também aquém do diálogo construtivo que pode gerar maiorias variáveis, dependendo do assunto em questão. Os eleitores não querem uma tecnocracia sem valores, ideais, ou densidade social. Mas estamos perigosamente perto do polo oposto: um simbolismo emotivo baseado em imagens e vibes, sem densidade racional e intelectual. Claro que alguns argumentarão que os eleitores podem votar com base em sensações, simbolismos abstratos e promessas vazias, mas que os políticos uma vez eleitos podem nomear equipas competentes que saibam lidar com os problemas de forma inteligente. O problema é que ao esvaziarmos o período pré-eleitoral de conteúdo que vá para além do simbólico e do emocional impedimos escolhas democráticas informadas e retiramos poder aos eleitores para responsabilizar os políticos. E este é um dos poucos poderes que nós, cidadãos normais, temos acesso.