Bruscamente, sem que nada de extraordinário se tivesse passado, senão um novo equilíbrio de forças na Assembleia da República, a questão da despenalização da eutanásia volta ao Parlamento.
Como e porquê, se ano e meio depois de terem sido chumbados na Assembleia os projectos-lei para a legalização da morte a pedido da vítima ou dos seus representantes nada mudou de substancial? Não houve qualquer pressão da sociedade civil, a opinião contrária da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros e da Comissão de Ética para as Ciências da Vida manteve-se, nada melhorou no SNS, os cuidados paliativos continuam a só ser acessíveis a 30% da população, o testamento vital continua em vigor e o programa com que o PS foi eleito não menciona sequer o tema. Então porquê agora? Porquê a pressa? Porquê a urgência?
Talvez porque a passagem do Orçamento Geral de Estado e do IVA da electricidade, viabilizada pelo BE, tenha tido como moeda de troca a legalização da eutanásia.
E esta entrega de uma licença para matar assim, por trinta dinheiros, parece querer fazer-se à socapa, ignorando pareceres, recusando um debate mais aprofundado, rejeitando adiamentos ou referendos populares, fazendo vista grossa aos trágicos deslizes já bem visíveis nos poucos países que legalizaram a eutanásia. É mais um destes abusos de poder da classe política feito em circuito fechado, longe dos cidadãos, numa questão que é, literalmente, de vida ou de morte.
Mas é de liberdade individual que se trata, dizem; de decisão sobre a própria vida. O Estado não quer interferir, não quer condicionar ninguém, mas, pelo sim pelo não, oferece um livre-trânsito para uma “partida digna”. Pode não oferecer mais nada, pode não oferecer qualidade de vida, mas oferece qualidade de morte. E para isso disponibiliza recursos.
Não gosto de ser apocalíptico, nem no conteúdo nem na forma, ou tão pouco de anunciar coisas terríveis no tom profético de Jeremias ou de Ezequiel, um chorando a Jerusalém perdida, outro pedindo o fogo dos céus sobre inimigos e amigos. Mas não haverá lugar para um agravamento do pessimismo perante esta vaga que, sob as bandeiras de um leviano libertarismo radical, ataca, não só valores e crenças comunitárias, mas os próprios fundamentos do Humanismo cristão, e até do Humanismo laico que caracterizou e ainda caracteriza os ideais da esquerda não sibarita e não decadentista?
O pacto tácito entre a elite plutocrática globalizante e os activistas das causas fracturantes levou certa esquerda a abandonar os trabalhadores, os pobres e os marginais para cavalgar a vitimização de minorias cada vez mais minoritárias e cada vez menos marginais. Os potentados que dominam a “economia-mundo”, denunciada por Immanuel Wallerstein, e que apenas pensam na multiplicação do lucro, fizeram este pacto tácito com as novas esquerdas libertárias que querem, uma vez mais, mudar a natureza das coisas e dos homens, trocando agora Lenine por Gramsci, e Marx pelos marxismos imaginários e pelo marquês de Sade. O objectivo é acabar com as fidelidades e lealdades comunitárias e recriar uma sociedade de plebes sibaritas atomizadas, regidas por eles, os mandarins iluminados. Querem um homem e uma sociedade que já nada têm que ver com os projectos comunistas e socialistas tradicionais. Filiam-se antes numa linha libertária, mais próxima do “divino marquês” do que de Marx – que ainda tinha um sentido ético, judaico-cristão, laicizado no maniqueísmo da luta de classes.
Na versão portuguesa deste conluio entre os sibaritas da globalização e seus capatazes e os esquerdistas radicais da revolução dos costumes, o BE e afins abstêm-se e deixam o PS governar em paz, de acordo com as regras do Banco Central Europeu e da detestada “Europa dos interesses”. Em troca, o PS dá-lhes o rebuçado das “causas fracturantes”, como se de uma minudência se tratasse.
É assim que, depois da ainda recente derrota da legalização da eutanásia – graças também à bancada do PCP –, e sem que nada se tenha alterado, a esquerda radical volta à carga, agora num quadro parlamentar que lhe é circunstancialmente mais favorável. E prepara-se para contrabandear a despenalização da eutanásia, escancarando portas que, uma vez abertas, serão muito difíceis de fechar. Portas para tenebrosas coisas, que já se abriram no passado.
Isto podia trazer à reflexão várias considerações: porque é que tão poucos países do mundo aprovaram a eutanásia? Na Europa, a Holanda, a Bélgica, a Suíça e o Luxemburgo. Fora da Europa, o Canadá, a Colômbia, um estado na Austrália e nove estados nos Estados Unidos. Ou seja, apesar da permissividade reinante em outras matérias fracturantes – como o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo – esta parece ter levantado barreiras.
A tradição eugénica
Os horrores praticados em nome da ideia de “evitar o sofrimento”, ou em nome da ciência e do progresso humano, eliminando ou empurrando para a aniquilação aqueles cuja vida, por não ser produtiva ou de alta qualidade, deixou de ter valor, pairam ainda como uma sombra.
Ou deviam pairar. Até porque esta nova sanha de decisão sobre a própria morte e da sua execução por profissionais sobre vítimas que se sentem um fardo inútil e abandonado ao sofrimento (também porque tudo à sua volta as induz a concluir que são um fardo inútil e as abandona ao sofrimento), não é alheia ao “darwinismo social” e às portas que abriu.
Ora os pais e os avós deste darwinismo social eram um núcleo de respeitáveis pensadores ingleses, de princípios iluminados e racionais, do século XVIII e XIX: Thomas Malthus, Charles Darwin, Herbert Spencer, Francis Galton. Galton, um homem de múltiplos conhecimentos e talentos, nascido numa família abastada de banqueiros e fabricantes de armas e aparentado com Darwin, era um pequeno génio que lia aos dois anos, sabia grego aos cinco e devorava Shakespeare aos seis. Foi ele o inventor da eugenia como método científico para aperfeiçoar a humanidade, seleccionando as raças e as famílias que deviam ser encorajadas a viver e ajudadas a prevalecer sobre as raças e as famílias “inferiores”, cuja reprodução devia ser desencorajada.
Galton fundou a Eugenics Review em 1909 e o primeiro Congresso Internacional de Eugenia, em que Winston Churchill participou, realizou-se em 1912, um ano depois da sua morte. Tudo muito científico, muito progressista, muito meritório e muito respeitável. Tudo parte da imparável marcha do progresso.
Galton teve inúmeros discípulos nos Estados Unidos e, mais tarde, na Alemanha. Nos Estados Unidos, a ideia de conseguir, através da ciência, um aperfeiçoamento da espécie, entrecruzando “os melhores” e “mais inteligentes”, levou à propagação de sociedades eugénicas, apoiadas por fundações como a Carnegie Institution ou a Rockfeller Foundation, que financiaram institutos que, a par de promoverem as “raças superiores”, procuravam identificar elementos “inferiores” – na época, imigrantes judeus e italianos.
Destes estudos surgiram vários projectos – como um financiado pela Carnegie que visava, precisamente, “Cutting Off the Defective Germ-Plasm in the Human Population”. Para realizar este objectivo elencavam-se 18 pontos. O 8º era a eutanásia. O método recomendado para o eugenicídio era a “lethal chamber”, uma câmara de gás manuseada localmente. Mesmo faltando à República americana cobertura legal para o efeito, várias instituições médicas puseram mãos à obra: em Lincoln, Illinois, administravam aos pacientes leites tóxicos, partindo do princípio de que os mais aptos sobreviveriam; recém-nascidos menos aptos eram eugenizados, o mesmo sucedendo aos internados em manicómios e noutras instituições de saúde mental que não mostrassem melhoras. A segregação e esterilização dos menos aptos foi outra solução. Cerca de 10.000 criaturas, na maioria mulheres, foram esterilizadas na Califórnia.
Hitler esteve sempre muito atento a estes estudos e práticas. Desde 1924 que seguia os progressos eugénicos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos com atenção e admiração. A eliminação de indivíduos inaptos, de crianças deficientes, de doentes mentais, bem como a esterilização dos racialmente inferiores, que os teóricos anglo-saxões tinham seguido numa linha de purificação e melhoramento da raça, interessavam-lhe particularmente. Num livro controverso (Hitler’s American Model – The United States and the Making of Nazi Race Law) James Q. Whitman procurou estudar a influência das leis segregacionistas do Sul norte-americano na legislação racial alemã, nomeadamente no casamento inter-racial. As teorias eugenistas e os programas de esterilização dos seres “inferiores” foram também uma fonte de inspiração. Segundo John Toland, Hitler, que conhecia bem a conquista do Oeste e que era, na juventude, um leitor entusiasta dos westerns de Karl May, ter-se-á também inspirado nas reservas índias para os campos de concentração.
Em 1906, o Estado de Oregon registou a primeira legislação que levaria à aprovação da eutanásia. Seguiram-se, décadas depois, casos conhecidos, em New Jersey, na Califórnia e no Missouri, em que o debate girava quase sempre entre a vontade do enfermo, previamente manifestada, e os princípios da lei geral, geralmente defendidos pelos governos, pelas instituições dos profissionais de saúde e pelas igrejas cristãs.
O entusiasmo na Alemanha hitleriana por estas soluções parece-nos agora evidente: a uma linha científica, materialista e vitalista com reflexos neo-pagãos juntava-se a ideia de superioridade racial e dos perigos representados pelos judeus. A eugenia anglo-saxónica e os seus princípios davam respeitabilidade e cobertura político-científica aos planos do III Reich na matéria.
De resto, já num filme de 1939, Acuso, produzido por iniciativa de Goebbels, se contava a história de um distinto médico alemão cuja mulher, sofrendo de esclerose em placas, pede para ser libertada da dor através do suicídio assistido. É o marido que, perante a recusa dos médicos, o tem de executar. Quando é levado a tribunal, passa de acusado a acusador dos médicos, que não tinham sabido prestar a devida atenção ao sofrimento da mulher, acabando com tudo.
O programa de eutanásia iniciou-se na Alemanha em Outubro de 1939, propondo que as crianças que, até aos três anos, mostrassem sinais de fraqueza ou de debilidade mental fossem enviadas para clínicas pediátricas para serem tratadas. Muitas foram liquidadas por ingestão de doses elevadas de medicamentos ou por privação de alimentos. Era um acto de misericórdia, a sua qualidade de vida era nula, eram um peso para a família, para a sociedade e para o Estado. Mais tarde – e a coberto da guerra –, estes programas estenderam-se a adultos, em modelos operacionais coordenados pelo gabinete do próprio Hitler. O modus operandi era um inquérito sistemático às instalações hospitalares, com intuitos puramente estatísticos. Depois, a dado momento, as equipas médicas e de enfermagem, que incluíam profissionais de alta reputação, começavam a seleccionar indivíduos com várias formas de demência, de origens raciais suspeitas ou criminosos internados há mais de 5 anos para serem levados para centros onde se procedia à sua eliminação. Aí eram gazeados e as cinzas enviadas à família, juntamente com uma certidão que atribuía o óbito a outras causas, que não a eutanásia. Eram seis as instituições hospitalares onde se procedia ao gazeamento das vítimas. Setenta mil pessoas foram assim eliminadas. O programa continuou, estendendo-se depois aos territórios ocupados, sobretudo na Europa de Leste e na União Soviética, com efeitos catastróficos.
A eutanásia, a esterilização, a engenharia genética foram sempre métodos praticados em nome de uma melhoria da sociedade como um todo ou da purificação social. Aldous Hexley denunciou e satirizou estes objectivos e as suas técnicas em Brave New World, onde geneticamente se criava uma sociedade escrupulosamente hierárquica e guetizada, regida por uma oligarquia superior. Os partidários da eugenia e os médicos do extermínio científico industrial dos campos de morte utilizaram todos os meios científicos disponíveis e experimentais na eliminação dos seres “inferiores”, imprestáveis para viver numa sociedade perfeita.
A sedução da morte
Não vou, evidentemente, comparar as boas intenções e a moral dos defensores da morte assistida com estes carrascos, mas pareceu-me útil traçar aqui esta genealogia eugénica da eutanásia, as portas que abre e os deslizes e abusos a que está sujeita. Há, evidentemente, importantes diferenças a ressalvar, até porque o princípio agora proclamado e reivindicado é a liberdade individual, o direito de decidir o tempo e o modo da própria morte, o fim do sofrimento.
Mas com que liberdade e autonomia? Não será a mera existência de uma lei que despenaliza a morte a pedido e que disponibiliza os meios para que se execute uma poderosa forma de coerção? Não será uma maneira particularmente eloquente de dizer a quem sofre, a quem não é ou deixou de ser autónomo e produtivo, que a sua vida não é digna, nem útil, nem desejável; que é um fardo para si mesmo, para a família e para a sociedade e que, como tal, tem à sua disposição, não os cuidados, a companhia, a valorização de que precisa, nem tão pouco esforços nesse sentido, mas uma maneira prática e eficiente de pôr fim a tudo, executada por profissionais com o alto patrocínio do Estado? Não será esta, por uso e por abuso, uma nova forma de seleccionar vidas indignas, inferiores ou menos aptas e de as empurrar para o extermínio? Não se estará a licenciar um instrumento que, mesmo com as restrições que por agora se lhe querem impor, conduz inevitavelmente – e estamos a ver isso na Holanda e na Suíça – à generalização de um julgamento sobre a dignidade de certas vidas e a um encorajamento ao seu fim?
A batalha pela imposição da eutanásia que a esquerda festiva quer agora oportunisticamente ganhar, é uma dessas batalhas simultaneamente simbólicas e decisivas, porque pode abrir caminho a muito crime sem castigo, a muito pecado sem remorso, a muita infâmia em nome de boas intenções. Quantos velhos e doentes, sobretudo em famílias modestas e de poucos recursos, não irão pedir que lhes ponham termo à vida, para deixarem de ser um peso para a família? E quantas famílias não lhes irão veladamente sugerir que aceitem a generosa oferta do Estado?
Paradoxalmente, as mentalidades libertárias contemporâneas, ao quererem atingir e ultrapassar os limites da liberdade e do prazer, criaram uma sociedade de afluência e consumo, de prazer e de prazeres, onde a velhice, a doença e a morte não têm lugar onde se esconder. Sociedades que tentam evitar a todo o custo realidades como o sofrimento físico e moral, a solidão e o que podem e devem fazer pelos que estão nessas condições, com todas as dificuldades e sacrifícios que isso implica (até porque, para tal, o Estado já não é tão célere a disponibilizar recursos).
A eutanásia não é uma causa político-partidária, não se põe em termos de esquerda ou direita, de religião ou laicismo, não traça sequer uma linha divisória entre bons e maus. É uma causa de vida ou de morte e da nossa vida e morte pessoal e colectiva, uma causa intimamente ligada à concepção do Homem e dos seus caminhos. É uma causa comum e muito séria que não pode ser tratada com leviandade, e muito menos ser usada como moeda de troca em negociações partidárias.
Vi a agonia de pessoas muito queridas que sofriam no limite do possível; e vi também, nessas circunstâncias e no deserto de tudo, sinais e gestos de alívio, de esperança e de vida intensa e plena. Porque o desespero do sofrimento físico e moral, mesmo no limite da dor e da humilhação, pode sempre ser compensado pelo amor, pela atenção e pelos cuidados dos que assistem os que sofrem.
Li e fascinei-me, adolescente, com Werther e com a sublimação da morte e do suicídio romântico. E com os dilemas agudos de Shakespeare entre viver e morrer, na sedução angustiada do hamletiano “To die, to sleep, perchance to dream” ou do belo e trágico suicídio de Romeu e Julieta, ao tomarem por morte o sono do ser amado, o aparente fim da sua razão de viver. Todos temos em nós uma tentação de morte ou momentos em que sentimos a sua sedução. Impressionaram-me e emocionaram-me particularmente histórias reais, como a de Ramon Sampedro, contada no Mar Adentro, de Alejandro Amenábar, com Javier Bardem como protagonista. E, muito antes, Whose Life is it, Anyway, um filme de há quase 40 anos, de John Badham, com Richard Dreyfuss, outro tetraplégico que pede a morte. Mas estes casos limite da arte e da vida não podem criar precedentes legais que conduzam à desumanização integral, aos piores instintos e contrabandos a infligir a terceiros. É que em nome de casos excepcionais para os quais a morte poderá surgir como uma solução, não se podem abrir portas que conduzam à banalização do massacre de inocentes, fragilizados pela doença, pela dor, pela falta de acesso a cuidados de saúde, pela pobreza ou pela ausência da família, dos amigos, do próximo.
E é aos que sofrem, não tanto de dores físicas, para as quais há hoje quase sempre solução terapêutica, mas de uma completa solidão, de uma sensação de inutilidade e de vazio; é aos “inaptos” que a sociedade vai abandonando ao desespero, que os mandatários populares quadrienais querem agora oferecer um passe social para a morte. Por trinta dinheiros.