As organizações corrompem-se com pequenas mentiras, que repetidas se tornam grandes e um dia transformam-se na organização e na sua cultura. Diz o sábio: “tem cuidado com o que pensas pois pode tornar-se no que dizes, tem cuidado com o que dizes pois pode tornar-se no que fazes, tem cuidado com o que fazes pois pode tornar-se no que és”.

Esta ideia é desenvolvida pelo psicólogo e best-seller Jordan Peterson, a propósito dos regimes totalitários do século XX (Peterson, Jordan. (2018). Diga a verdade – ou, pelo menos, não minta, In 12 Regras para a vida – Um antídoto para o caos (pp. 263-295), Alfragide: Lua de Papel). O nazismo e o comunismo e os seus milhões de mortes aconteceram não apenas por causa dos seus ditadores e algozes, mas também por contributo de uma quantidade de pessoas que seguiram as suas ordens e ideologias e não as negaram. Mas eram todos assassinos? Com certeza que não mas prescindiram do seu dever de responsabilidade. Hannah Arendt também explora este tema em “A banalidade do mal”. Peterson lança esta hipótese, sustentada na grande obra “O Arquipélago de Gulag”, de Aleksandr Soljenítsin, a qual relata a experiência deste russo nos campos de concentração soviéticos. Foram as pessoas que não foram capazes de dizer a verdade perante o medo e que mentiram a si mesmas, substituíram os seus princípios éticos pelo politicamente correto. Como se diz, “uma mentira repetida muitas vezes, torna-se verdade”. Cedo certas crenças redundam no “sentir” da organização. E o mal torna-se uma banalidade.

O mesmo podemos aventar que aconteceu (já não é a primeira vez) na Igreja Católica, nesta crise dos abusos. A mentira perpetua-se quando a hierarquia se cristaliza e se afunda na proteção do poder a qualquer custo. Alguns católicos ainda não compreenderam o que o Papa disse, que a corrupção é a do encobrimento, da indiferença e do poder, o clericalismo. O não ser capaz de ouvir “os últimos” e sacrificar a sua imagem. As mentiras correram e cresceram, encobriu-se, calou-se e depois deixou de ser sustentável. É absurdo dizer que a maioria dos padres são pedófilos, sequer homossexuais, por mais que alguns o digam com uma recolha de dados duvidosa e uma correlação entre homossexualidade e pedofilia difícil de sustentar. Pedófilos há-os em todo o lado, até na Igreja, mas se houver ação firme, rápida e corajosa, estanca-se a ferida rapidamente e não se perpetuam atitudes de pusilanimidade que se espalham como atitude geral e um dia a infiltração é difícil de conter.

Mais curioso ainda é que muitos destes e dos tradicionalistas, sempre foram os mais acérrimos defensores do magistério papal, mas pelos vistos dos Papas que os agradam. A fidelidade a Pedro é para os Pedros que eles querem, pois o Papa Francisco já não. O que os incomoda tanto? O seu apelo por uma Igreja pobre? Está a roubar-lhes os seus tronos? Há que agir sobre uma cultura instalada, a qual não é exclusiva da Igreja, mas acompanha os tempos. Nas famílias, nas escolas, também se encobriu.

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Acontece também com as empresas. Estas corrompem-se quando as mentiras são a cultura da empresa. A cultura da empresa é “a forma como se fazem as coisas aqui”, como dizia Jack Welch sobre a GE, uma das maiores multinacionais de sempre (Welch, Jack (2010). Vencer, Actual Editora). Acrescenta que esta é também uma boa forma de saber em que acredita uma organização. Remata que o “pequeno segredo sujo” das organizações é a franqueza. É aquela atitude desconfortável e muitas vezes difícil de viver, até nas famílias, resistir àquele cancro silencioso que toda a gente sabe que existe, ou pelo menos alguns, mas nada se faz para o erradicar, pois custa ser o “mau da fita”. O preço a pagar pode ser a incompreensão, a perda de “prestígio” ou “poder”. A burocracia, os níveis excessivos e estanques, os infinitos “departamentos” e “quintas” bloqueiam a decisão e o crescimento ágil da organização. A negação é confortável, mantém tudo na mesma e sem desafios exigentes, mas algum dia tudo vai ser insuportável e em vez de construir um céu na terra, constrói-se o “inferno” na terra, como diz Peterson. É bom lograr pela transparência, pela resolução dos problemas, mesmo que custe a cara e algumas mazelas ao início. Separamos o acessório do importante, do caos sobrevém a ordem, liberta-nos e desbloqueia uma vida mais autêntica e plena de significado.

Uma das medidas para combater a burocracia, neste caso o clericalismo, pode ser escolher os melhores líderes. Delegar responsabilidade e eliminar barreiras entre níveis, implementar a franqueza e defender a verdade e não o poder (escolher as melhores soluções, não interessa quem as mencionou ou se vão colocar alguém em perigo). As hierarquias são necessárias, mas em primeiro lugar estas não estão fundadas em antiguidades e “direitos”, mas em mérito. Por fim, o princípio de gestão é baseado no serviço e não na autoridade.

Quando um líder está preparado e serve, tem a lealdade dos seus colaboradores. Quando um líder está e manda, “porque sim”, bem pode vociferar e até manter o poder, mas não manda e não lidera. Liderar é também conseguir fazer tudo em conjunto, trazer cá para fora o melhor dos outros e não ser sempre a solução. Daí Jack Welch questionar esta necessidade de líderes “carismáticos”. Os Churchill ou os Jobs também os há, mas a liderança agora é sobretudo sobre liderar com os outros e orquestrar uma sinfonia harmónica. O líder é alguém que se faz e não nasce necessariamente líder, no meio da permanente mudança e incerteza. Por isso, o mérito não significa que o líder seja perfeito e “melhor do que os outros”, “mas que vê mais longe”, como dizia D. Nuno Brás Martins, recentemente nomeado para Bispo do Funchal, numa aula sobre liderança que o convidei a dar no ISEG/UL.

Espera-se que o líder “resolva”. Resolve mas sobretudo quando ele próprio foi o primeiro a procurar ser melhor pessoa e a querer, a seguir, desenvolver os outros. Querer ele levar o “fardo” e depois partilhá-lo com quem se inspire pela sua visão e assuma a responsabilidade que todos temos pelo mundo.

Alguém pode argumentar que a Igreja não é como as empresas e Jesus até escolheu “pescadores” como seus primeiros apóstolos. É verdade, a vocação (chamada divina) não significa mérito do interessado (sendo que não há demérito nenhum em ser pescador) mas antes uma escolha e dom gratuito de Deus. Mas isso implica que Deus conta com a iniciativa de cada um para construir o Reino e significa também preparação. Exigência espiritual, com certeza, mas também humana. Pedro sabia liderar. Isso não é apenas inspiração divina, é prática e sabedoria. Não podemos mais ter líderes na Igreja que não estejam preparados para liderar, para dizer que não e arriscar a pele, sua e da imagem da instituição. Que não estejam preparados sobre os temas contemporâneos, que não saibam comunicar, que não saibam finanças, que não saibam estar com as pessoas e fazer o que elas gostam. A liderança implica desenvolvimento humano e não apenas teológico e filosófico. O Papa já o enfatizou na Amoris Laetitia (203). É preciso focar estes temas na formação dos Padres. Assim temos uma Igreja de antiguidade e de autoridade e não de serviço. Quantas pessoas se revoltam porque muitos líderes religiosos não são pessoas bem formadas, não compreendem os problemas reais dos fiéis, pois mantêm-se na autorreferencialidade. Isto aplica-se também a leigos, é claro, pois quando estes são clericais, “beatos”, mal preparados na sua profissão e crenças, nos seus trabalhos e vidas normais, afastam qualquer um da fé. O cristão não tem de estar sempre a fazer catequese para ser um bom cristão, tem é de dar o exemplo na sua vida corrente e normal. E também se abrir ao exemplo dos outros, muitos não cristãos. Como precisamos destes cristãos “normais”, não autorreferenciais, que são, na verdade, a maioria, os quais têm a missão de mudar o mundo. Os padres estão lá para apoiar, apenas.

Quando a Igreja chega onde chegou com a crise dos abusos, só podemos dizer que os culpados não são só os abusadores, mas os decisores que encobriram, bem como os pais e educadores que não acreditaram nos relatos e quem sabia e não denunciou. É por isto que o clericalismo é a razão dos abusos. É este poder acima do serviço.

Uma palavra final para o apelo do Papa por uma Igreja pobre, que tem uma ligação direta com a prevenção dos abusos. As pessoas que têm de ganhar a vida, “não têm vícios”, como diz o povo. Não estou a dizer que os padres não devam receber o seu salário para ajudar nas suas despesas, pois deram toda a sua vida pelos outros, mas que a Igreja deve ser pobre, não só porque é a sua principal missão, mas porque rica redunda no que chegámos. Dinheiro, segurança e poder como primeira prioridade cega a pessoa às necessidades alheias e, consequentemente, leva à falta de empatia. O abuso acontece por uma falta de empatia atroz pela dignidade do outro. O outro é alguém que eu posso usar sem pedir permissão e descartar, para meu bel prazer. A Igreja perseguida sempre foi mais santa. A Igreja da paz, é como o império romano na prosperidade, entra em decadência. Isto não quer dizer que a Igreja deva ser “miserável” e que a guerra e a perseguição sejam boas, mas deve “vigiar-se” permanentemente e não se esquecer da sua missão primordial.

A responsabilidade é de todos. O medo de manchar a imagem sobrepôs-se à elementar justiça de punir e proteger as vítimas. As crenças como “estes miúdos não sabem o que dizem” ou “como é possível um padre abusar?”, “vêm relatar tarde estes eventos porque são confusão da cabeça”, “isto deve ser para tramar a Igreja” espalharam-se como verdade e tornaram-se a cultura da organização e um dia o castelo de mentiras não mais aguentou e desmoronou-se e “foi grande a ruína daquela casa” (Mt. 7,27), e “nada há encoberto que não haja de revelar-se, nem oculto que não haja de saber-se” (Mt. 10, 26).

António Pimenta de Brito criou a primeira Pós-Graduação em Portugal em Gestão de Organizações Religiosas, no ISEG-UL e é corresponsável pelo site internacional em língua portuguesa, fundado na Áustria, www.datescatolicos.org