Nas alegações finais, no Tribunal de Monsanto, o procurador Teodósio Jacinto referia que o País estava perante um processo de conversão do assassino em vítima, através da manipulação de todos os meios ao seu alcance, nomeadamente dos media: «Subitamente, deixou de ser o problema dos terroristas das FP25 e, num aparente “passe de mágica”, passou a ser o Estado o terrorista, por perseguir criminalmente o réu Otelo e os restantes elementos que integraram o Projecto Global. É típico do terrorismo.» A decisão da primeira instância foi proferida em Maio de 1987. Estamos em 2021 e continuamos com alguma dificuldade em contrariar a perspectiva do procurador.
A manipulação da opinião pública não foi um exclusivo do julgamento. Começou antes da operação policial e ainda dura, ao ponto de na semana passada termos assistido a tantos que, do jornalismo à política, dos ex-militares à opinião publicada, continuam a esforçar-se para que uma organização terrorista que atentou contra a democracia, que matou mais de uma dezena de pessoas, passe definitivamente a uma nota de rodapé da história. Quisemos esquecer, e continuamos a querer esquecer – sem qualquer solidariedade para com as vítimas, hoje como há 30 anos.
Tudo vem de longe, na verdade: de relações de amizade num país estruturalmente endogâmico, de camaradagem de armas, de afinidades políticas ideológicas e da tentativa bem sucedida de salvar a face de uma personalidade concreta. Se há coisa que toda a história das FP25 deixa evidente é a fragilidade das instituições e a forma como a protecção do País influente, em que Otelo se movia, era mais importante que tudo o resto.
Em 1981, a Presidência da República (Ramalho Eanes) e o Governo (Aliança Democrática – PSD/CDS) tomaram conhecimento de que havia, pelo menos, indícios do envolvimento de Otelo Saraiva de Carvalho nas FP25. A informação foi prestada pela secreta militar e foi confirmada pelos intervenientes numa reportagem da RTP transmitida em 1996. Vítor Alves transmitiu a informação a Vasco Lourenço, e este confrontou Otelo com o facto, que o negou. Também o ministro da Administração Interna, Ângelo Correia, sugeriu a Otelo ter cuidado com o que se estava a passar. A consequência lógica da época foi, imagine-se, condecorar Otelo com a Ordem da Liberdade em 1983. Um ano depois seria detido pela Polícia Judiciária.
Também o então deputado Manuel Alegre fez os seus alertas a Otelo, segundo palavras do próprio. Não importava que houvesse vítimas, mortos, baleados, dinheiro roubado. Segundo Alegre, «como ele era um símbolo do 25 de Abril, lembro-me de várias vezes o ter chamado à atenção para os riscos que, no plano pessoal e político, corria seguindo aquele caminho». A democracia podia estar a ser afrontada com violência, os portugueses podiam estar sujeitos à morte violenta ao virar de uma esquina, mas o humanismo selectivo preocupava-se com outras questões de superior interesse nacional, presumo. Em bom rigor, não havia, no tal País influente, quem desconhecesse o muito possível envolvimento de Otelo nas FP25. Ninguém quis saber de mais que não fosse protegê-lo, julgando com isso estar a proteger o regime.
Várias vozes se foram erguendo no sector político também contra a invocada barbaridade que estaria a ser cometida pelo Estado português face aos desgraçados dos presos preventivos das FP25 – ao contrário do que tinha sido a conduta das FP25 nos anos anteriores, quase exclusivamente dedicada à caridade e à acção política legítima. Um dos terroristas, Álvaro Monteiro, tinha sido enviado para uma prisão de alta segurança para cumprir a prisão preventiva. Hasse Ferreira, antigo camarada de Mouta Liz (dirigente da FUP/FP25) no Movimento Socialista Unificado, em conjunto com Margarida Marques (hoje eurodeputada do PS), no Parlamento, erguia a voz contra a violação dos direitos dos presos, porque um preso preventivo não podia estar numa prisão de alta segurança. Álvaro Monteiro foi, por fim, colocado no EPL, em regime de cela aberta. Acabaria por fugir da penitenciária de Lisboa. Na sequência dessa fuga, alguns dos fugitivos foram passear ao Areeiro, onde foram vistos, e só depois desapareceriam – era o nacional-porreirismo em todo o seu esplendor.
O director-geral dos serviços prisionais, Gaspar Castelo-Branco, cumprindo ordens do Governo, impôs condições mais restritivas aos presos, para garantir que não havia mais fugas. Foi uma excentricidade que lhe valeu a morte: acabou baleado à porta de casa, à queima-roupa, com tiros na nuca. Castelo-Branco foi deixado à sua sorte. O poder político não deu cobertura às medidas que o mandou implementar, ignorando que o ambiente mediático já anunciava o que se viria a concretizar. Um dos advogados do processo acusava o director-geral de ter um comportamento criminoso em relação aos presos.
Maria de Lurdes Pintasilgo, candidata presidencial e ex-primeiro-ministro, declarava que Portugal tinha entrado no rol dos países que violavam direitos humanos com o processo das FP25. Agostinho da Silva era visita habitual dos presos, que estavam quase sempre em greves de fome (aparecendo depois, e afinal, na sala de audiências de plena saúde), alertando para os seus direitos. Os defensores dos direitos humanos da época não quiseram saber do homicídio de Castelo-Branco porque só viam um tipo de vítimas à frente: os acusados de terrorismo. O poder político mal se fez representar no seu funeral. Eanes não foi. Cavaco não foi. Soares não foi. Freitas do Amaral não foi. Mas a Presidência da República, já de Mário Soares, recebia tempos depois, e amiúde, os movimentos pró-amnistia, um gesto aliás repetido pela Provedoria de Justiça e até pelo Cardeal Patriarca de Lisboa.
Mouta Liz, por sua vez, tinha fugido às detenções, avisado que fora pelo governador do Banco de Portugal, onde trabalhava. Foi de férias, meteu baixa médica. Apesar dos mandados de captura, conseguiu obter atestados médicos emitidos por professores da Universidade de Lisboa, que comprovavam problemas de estômago. Problemas, esses, que não o impediram de almoçar com jornalistas do Expresso no Pabe, um restaurante muito querido à alta-burguesia lisboeta, onde deu uma entrevista com direito a fotografia tirada à porta do estabelecimento na capa do jornal.
Em vários jornais se iam acumulando antigos militantes de extrema-esquerda. O Expresso, por exemplo, fez a cobertura do julgamento através de um jornalista que tinha tido ligações às Brigadas Revolucionárias. As excepções foram, ao longo de todo o processo, O Diabo e O Semanário.
No Parlamento, a luta pela amnistia também se dava. Não só no PS, mas também na bancada do PSD, onde Coelho dos Santos, advogado de um dos presos interessados no perdão político apresentava projectos de amnistia enquanto deputado, sem que alguém alguma vez tivesse invocado a mais leve suspeita de conflito de interesses.
Também as elites culturais do País se movimentaram para defender direitos humanos. Sem que alguma vez tivessem erguido a voz pelo fim das FP25 ou pelos direitos das suas vítimas, resolveram alcançar o cume da luta humanitária, exigindo a libertação de Otelo e a amnistia dos presos da organização terrorista. Natália Correia, Agostinho da Silva, José Saramago, Alçada Baptista, David Mourão Ferreira, António Lobo Antunes, Zeca Afonso, José Cardoso Pires, José Mário Branco, Luís Miguel Cintra, Joaquim Furtado, Baptista-Bastos, José Pedro Gomes, Maria do Céu Guerra, Luiz Francisco Rebello, António Macedo, Eunice Muñoz Rui Veloso, Fausto. Tantos e tantos que se ergueram pela defesa dos direitos humanos… dos presos.
Limitavam-se, talvez, a acompanhar os movimentos internacionais de solidariedade para com Otelo e restantes presos. Num hotel de Lisboa foi também organizado um evento pró-amnistia, financiado pelo Parlamento Europeu, através dos Verdes alemães, com membros da ETA e outra gente distinta, como a que foi enviada pelo regime de Kadhafi para o efeito.
Indiferentes às lutas humanitárias, vários dissidentes das FP25 foram dizendo, ao longo de muitos anos, que os dirigentes da organização estavam a lutar exclusivamente pela sua salvação, não se importando com as condenações dos operacionais, que tinham assaltado bancos cujo produto era depois entregue aos dirigentes. Alguns acusavam mesmo Otelo e Mouta Liz de serem uns traidores que teriam arrecadado boa parte do dinheiro roubado, apenas distribuindo migalhas aos operacionais.
A sociedade portuguesa acabou convencida da necessidade da libertação de Otelo, como demonstraram algumas sondagens da época, e respondeu com indiferença à amnistia. Tempos depois de o Parlamento ter perdoado o crime de organização terrorista, o país saía à rua pela causa (justa) da libertação de Timor-Leste ou (também com justiça) contra o racismo, depois do bárbaro assassinato de Alcindo Monteiro às mãos de um bando de skinheads. Otelo seria libertado com direito a foguetes. Todos seriam perdoados do crime de organização terrorista ainda antes de ser conhecida a decisão final do Tribunal Constitucional.
As coisas acabaram como se sabe, ou como se devia saber. Um imbróglio judicial provocado, essencialmente, pelos próprios arguidos, uma amnistia que dividiu o Parlamento, um julgamento que acabou por ser repetido, como entendia o Tribunal Constitucional, mas que, face à amnistia, terminou com absolvições. Com o Ministério Público a deixar cair de vez o processo depois de ter deixado passar um prazo de recurso. E com juízes praticamente exilados na Bélgica, em Israel ou em Macau, por razões de segurança. Um deles, Martinho de Almeida e Cruz, que não foi também assassinado porque não calhou, colocado na representação diplomática em Bruxelas, acabaria por receber ordem de regresso a Portugal, pouco depois da amnistia aprovada, numa altura em que era ministro da Justiça Vera Jardim e secretário de Estado dos Assuntos Europeus Francisco Seixas da Costa, antigo membro do Movimento de Esquerda Socialista, que tinha apoiado Otelo nas presidenciais de 1976, e do qual faziam também parte, por exemplo Jorge Sampaio que, enquanto Presidente da República, estaria por essa altura a condecorar Isabel do Carmo ou Camilo Mortágua.
O percurso que conduziu ao esquecimento foi longo, mas foi feito com persistência. Pacheco Pereira escreveu, em Abril de 2001, que os portugueses foram «vítimas colectivas da cobardia face às FP25 de Abril». Talvez. Mas Portugal e as FP25 de Abril têm uma história de concubinato e não de repúdio. É uma história de silêncios cúmplices, de desprezo colectivo pela democracia. E, claro, do nacional-porreirismo inimputável das elites.
A única coisa que se exige hoje é que não voltem a sê-lo outra vez e que não permitam que uma organização terrorista que actuou contra a democracia, que visou derrubar o regime, que assassinou, que tentou matar, que baleou, que roubou, que destruiu, passe novamente a nota de rodapé. O debate da morte de Otelo – que, de resto, lamento – não foi um debate sobre Otelo. Foi sobre nós e o nosso nacional-porreirismo. Fomos sempre nós quem esteve em causa nisto tudo.