Na cena inicial de A Canção de Lisboa, o filme de Cottinelli Telmo, Vasco Santana, isto é, o personagem Vasco Leitão, o “Vasquinho da Anatomia”, aguarda, junto com outros colegas, a chamada para o exame de Clínica Médica. À sua frente está um tal Teófilo das Neves Claro, um colega africano, de pele bem escura, que confessa que vai para aquele exame “completamente em branco”. E Vasco Leitão, olhando-o de frente, com ar gozão, diz-lhe: “pois olha que eu estou a ver as coisas muito negras”.
Para Cláudia Silva, que há tempos nos explicou as suas ideias sobre “racismo idiomático” e sobre o uso de expressões com a palavra negro, a frase de Vasco Santana na personagem de Vasco Leitão, revelaria, sem margem para qualquer dúvida, uma sociedade racista herdeira da escravatura, e é infelizmente assim que as coisas são vistas hoje em dia por muita gente da nossa esquerda, em particular por militantes do Bloco, do Livre e, até, do PS, que, na sua acção política quotidiana e nos seus programas eleitorais, erigiram o suposto racismo dos portugueses como um dos grandes malefícios sociais a combater.
Mas será mesmo um malefício social, um problema real e observável, tanto no tempo de Vasco Santana como agora, ou foi a nossa noção de racismo que mudou a tal ponto que tendemos, hoje, a chamar racismo a coisas que o não eram e o não são? O senhor Clive Davis, se fosse vivo, concordaria com esta última ideia e diria que nos tornámos hipersensíveis, susceptíveis, altamente exagerados e inclementes na avaliação da forma como Portugal lidava e lida com as questões raciais. Se dominasse o léxico actual diria que nos tornámos politicamente correctos. Quem é, ou melhor, quem era o senhor Davis e de onde o conheço? Clive Davis era pai de David Brion Davis, meu prezado e infelizmente já desaparecido colega, um homem que é unanimemente reconhecido como um dos maiores historiadores da escravatura e a quem já me referi em artigo anterior. Há anos, falando do seu passado e da sua vida familiar, David Brion Davis contou-me que o pai estivera uns meses em Lisboa, em 1941, na época da 2ª Guerra Mundial, ou seja, apenas alguns anos após o filme A Canção de Lisboa ter sido realizado. O senhor Clive Davis era correspondente de guerra, pretendia seguir para Itália a fim de acompanhar os acontecimentos nesse teatro de operações e ficou quatro meses na nossa capital à espera de obter autorização e passagem para prosseguir viagem, o que não chegaria a conseguir. Enquanto aqui esteve fez um diário da sua estadia. Foi esse diário que David Brion Davis me pediu para ler a fim de lhe explicar certas passagens e situar alguns personagens que, não estando ele familiarizado com a cidade nem com a história recente do país, não conseguia enquadrar. Foi por essa via que eu tive oportunidade de ler o diário do senhor Clive Davis, um americano em viagem que diz coisas curiosas e muito perspicazes sobre Salazar, a pobreza nacional, a estridência dos cauteleiros e das varinas, etc., e também fala das relações raciais, que é o que aqui e agora interessa.
Clive Davis cruzou-se, em Lisboa, com negros de braço dado com mulheres brancas, viu, certo dia, “a white woman on the street with three wooly headed negro children” e constatou que isso não parecia surpreender ou incomodar ninguém. Ou seja, aos olhos de um norte-americano imparcial e mesmo em pleno salazarismo, Lisboa e o Portugal que visitou durante a sua estada no nosso país eram, nesse capítulo, muito diferentes de algumas cidades e territórios norte-americanos que Davis conhecia. Na sua opinião Portugal não parecia ou não era racista. É minha convicção que o Portugal actual continua a não o ser. Existem racistas no nosso país, sem dúvida, alguns deles são agressivos, mas o racismo, isto é, a convicção de que haveria raças humanas e, mais do que isso, uma hierarquia entre elas, com raças superiores e inferiores, raças essas que imporiam de forma inelutável as características dos indivíduos que a elas pertencessem, isso é pouco difundido no país.
É verdade que há relatórios da ONU a acusarem Portugal de racismo e a fazerem várias recomendações para o combater, incluindo a alteração dos programas de ensino da disciplina de História, mas o método de elaboração desses relatórios e o trajecto pessoal de alguns dos seus relatores recomendam que os olhemos com muita reserva. Um exemplo bastará para ilustrar este ponto. Em 30 de Novembro de 2016 o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial, da ONU, elaborou um relatório sobre a situação portuguesa que tinha, também, recomendações quanto ao ensino da História. De facto, a perita relatora nomeada pelo Comité para avaliar o andamento das coisas em Portugal desconfiou do que se ensinava nas nossas escolas. Dariam elas o necessário destaque ao contributo dos africanos para a história do país? Continuar-se-ia nelas a utilizar a palavra “Descobrimentos”, que, segundo a relatora, seria um conceito “controverso”?
Talvez se faça alguma luz sobre tantas e tão insólitas reservas e desconfianças da perita relatora relativamente ao nosso país se soubermos que a pessoa em questão é a senhora Verene Shepherd, uma historiadora jamaicana que faz — ou fazia, então — parte do Secretariado do CARICOM, a associação das Caraíbas que está a pedir indemnizações aos países europeus que praticaram o tráfico de escravos, Portugal incluído. Ou seja, a senhora Shepherd é uma activista, uma académica engagée, e é patente — basta ler o que escreve — que tem uma série de preconceitos (e de objectivos) a respeito do passado colonial do nosso país.
Não estou a sugerir que haja qualquer ilegalidade ou desonestidade da parte da minha colega jamaicana, estou apenas a desenhar melhor o seu perfil porque esse perfil, que é muito pertinente para o nosso assunto, não nos foi dado por Fernanda Câncio e outros jornalistas que invocaram o seu relatório para alicerçar a tese de que Portugal seria um país inquestionavelmente racista e deveria alterar a forma como ensina a disciplina de História. As pessoas ouvem falar em Comités da ONU e julgam que são coisas neutras, assépticas, imparciais, mas poderá não ser exactamente assim. Alguns destes comités — pelo menos os que eu situo por via da minha actividade como historiador da escravatura —, estão infiltrados ou foram apropriados por activistas, pessoas que têm uma agenda política, da qual não fazem, aliás, grande segredo.
É, por isso, preciso que o país acredite mais no senhor Clive Davis e menos na senhora perita da ONU. É preciso que não vá atrás do choro dos activistas e que não se deixe convencer de que é estruturalmente racista porque nada indica que o seja. Isole os racistas que existem no seu seio, critique-os, confronte-os, não os tolere, mas continue saudavelmente a rir com o “Vasquinho da Anatomia” e o seu colega negro Teófilo das Neves Claro.
Historiador e romancista