Permitam-me que, neste terceiro artigo, comece por agradecer ao Observador a amabilidade com que me tem agraciado, ao aceitar estas minhas redacções. Aproveito ainda para referir que sempre adorei escrever e, na escola primária, aplaudia entusiasticamente quando o professor Sabino dizia “Hoje vamos escrever uma redacção.” Há algo de catártico no acto de escrever, como se nos livrássemos de um peso que, de outra forma, carregaríamos como uma mochila atestada de pedras. Convenhamos também que, nestes tempos difíceis, sempre é uma forma mais baratucha de purgar o que nos vai na alma, porque fazê-lo para alguém enquanto deitados num sofá – ou, nesta altura, deitados em casa com o Zoom à frente – é infinitamente mais dispendioso. Resta-me, por isso, agradecer também a vós, estimad@s leitor@s, que me têm remetido comentários deliciosamente simpáticos – na sua maioria – que muito aprecio.
Assim sendo, o artigo de hoje é predominantemente pessoal e com muito pouca ciência. Ao escrever esta última palavra pareceu-me ouvir as gargalhadas dos que comentaram imediatamente “Como se os outros tivessem tido alguma!”, mas pronto… Não se pode agradar a gregos e a troianos e, para que não fique no ar esta ideia de que o caixa d’óculos do João Correia não faz ideia do que é ciência, convido todos a espreitarem o tab “Literature” no website da Flying Sharks, onde encontrarão alguma da literatura científica que vou produzindo com os meus colegas e alunos. Numa altura tão delicada das nossas vidas, estes papers sempre poderão ajudar caso se vejam confrontados com noites de insónia, como me tem acontecido frequentemente quando começo a pensar como vou pagar ordenados daqui a 3-4 meses, quando as reservas começarem a chegar ao fim… Adiante.
Por agora, focar-me-ei na razão de ser do patriotismo exacerbado que tenho demonstrado nos últimos dois artigos, começando pelo facto de que nem sempre fui assim…
Em 1991 estava no segundo ano de Biologia Marinha e passei por uma daquelas crises de rebeldia que me levou a pendurar a bandeira portuguesa – invertida – na parede do quarto, meter duas argolas na orelha esquerda, não lavar as calças de ganga durante meses e usá-las esburacadas – sem ter feito buracos – arregaçadas sobre umas lustrosas botas da tropa que comprei no Casão Militar, na Feira da Ladra.
Actualmente, ao pensar nesses dias reajo com a expressão anglófona que ficou vulgarmente conhecida como facepalm, mas há um motivo por trás da angústia que me ardia nas entranhas nesses distantes tempos de adolescência. Esse motivo está seguramente relacionado com os empregos que tive no Chicago Board of Trade (mercado de futuros de Chicago) nos verões de 1989, 90 e 92. É importante referir que sou assumidamente ribatejano, mais propriamente da terra que fabrica o vinho do Cartaxo, onde o ponto alto do entretenimento consistia em aplaudir um bando de cavalheiros de leggings e collants rosa, calçados com sabrinas enquanto espetavam ferros de um palmo no dorso de um mamífero senciente. Nunca fui grande adepto desse espectáculo, que me parece tão obsceno quanto grotesco, e sintomático de um atraso cultural que rivaliza com aquele que um viajante no tempo experimentaria se aterrasse acidentalmente na Rinchoa – mas durante a peste bubónica.
Agora imaginem o que terá sido ir deste ambiente – em 1989 – para Chicago. Numa altura em que, se quiséssemos chocolates suíços tínhamos de ir a Ayamonte comprá-los – regressando num ferry com mais esfregonas e Playmobil do que pessoas –, imaginem o que terá sido chegar a um hipermercado chicaguiano, onde a fila dos chocolates se estendia até perder de vista. Imaginem o que era estar à mesa com pessoas que falavam em direitos de animais e protecção do planeta, de energia verde e veganismo, quando eu tinha acabado de regressar de uma matança de porco na aldeia do meu pai, onde os guinchos lancinantes do pobre animal me fizeram escorrer lágrimas – envergonhadas, porque um homem não chora – pelas faces abaixo. A dor experimentada nesses momentos foi de tal forma atroz que o cheiro da queima dos pêlos do desgraçado bácoro, com um isqueiro, se traduziu num sorriso tímido porque, pelo menos, sabia que o primo do Babe já não estava a sentir nada.
Foram estas – e muitas outras – pequenas discrepâncias na forma como as coisas se faziam cá e lá que me levaram a pendurar a bandeira invertida. Mas, entretanto, tudo mudou. Perdoem-me o momento de publicidade barata, mas quem já leu a trilogia “Sex, Sharks and Rock & Roll”, ou o mais recente “Tubarões Voadores”, sabe que tenho sido abençoado com uma carreira digna do Jacques-Yves Cousteau e reconheço que o espírito americano “Yes We Can!” contribuiu de forma decisiva para tal. Essa carreira, repleta de injecções nocturnas em tubarões, mar, aviões, tempestades, vacas açoreanas, pinguins e alguns outros episódios menos próprios, levou-me a percorrer os quatro cantos do mundo, desde a Austrália ao Brasil, Japão à África do Sul, Islândia a Singapura, entre tantos outros destinos, uns mais exóticos do que outros. Mas todas essas viagens permitiram-me chegar a uma conclusão ao longo destes quase cinquenta anos:
Portugal é o melhor país do mundo.
Talvez por isso não tenha havido ainda oferta de emprego milionária para o Médio Oriente que me fizesse vacilar perante a ideia de abandonar a freguesia do Areeiro em Lisboa, onde conheço todos os recantos e lojinhas, que tento frequentar em vez das grandes superfícies. Deixem-me substanciar a poderosa afirmação anterior com alguns exemplos práticos e comecemos com aqueles com os quais estou mais familiarizado, porque envolvem a carga burocrática associada ao transporte de animais vivos entre fronteiras. Ditam as regras que um conjunto de animais não possa arrancar a sua viagem para um destino sem que esta seja aprovada pelas autoridades competentes no dito destino final, o que faz perfeito sentido porque não queremos um conjunto de caixas com fanecas a apanharem sol numa alfândega em Shanghai. As mesmas regras ditam, por isso, que as autoridades sanitárias na origem entrem em contacto com a sua congénere chinesa – para utilizar o mesmo exemplo – que deverá indicar o modelo do certificado sanitário que acompanha os animais. Em mais de duas décadas deste negócio – primeiro na importação, ao serviço do Oceanário e, segundo, na exportação, enquanto gestor da Flying Sharks – posso assegurar que este processo me deu muitas dores de cabeça, mas estas nunca foram originadas em terras lusas. Se os chineses (e muitos outros) apreciam ligar o complicómetro, os nossos compatriotas são exímios em arranjarem soluções criativas para problemas aparentemente intransponíveis, fenómeno genericamente conhecido como desenrascanço.
Podia narrar-vos mil episódios em que a rigidez holandesa, ou a incompetência americana, colocaram o bem-estar de animais em risco, mas também posso partilhar o momento sublime em que um senhor da Groundforce, no terminal de carga de exportação do aeroporto de Lisboa, me perguntou se eu preferia mudar de sítio o meu tanque com um pequeno tubarão (que ia para Viena), para que o excesso de actividade que se fazia sentir no terminal não o incomodasse. Dias depois elogiei essa preocupação à chefia deste amigo, que me apertou as duas mãos, com as suas, de olhos a brilhar, quando me viu novamente no aeroporto. Disse-me que, em mais de vinte anos de carreira, nunca tinha recebido um elogio. Repito: “nunca”.
Nós, portugueses, desfazemo-nos em salamaleques quando um cámone nos pergunta como se vai para o Rossio e praticamente o convidamos para almoçar. Mas é-nos muito fácil ser lixados – às vezes com “F” – para com os nossos compatriotas, como bem temos visto nos diálogos viscerais que pululam nas redes sociais e blogosfera, mais ainda durante esta crise covidesca.
Eu cá reafirmo o meu apoio a quem está ao volante desta máquina numa altura tão difícil, independentemente da cor da camisola que vestem. E, para que não restem mais dúvidas, reafirmo ainda que a minha intenção em ingressar na carreira política é tão vigorosa como a de fazer o pino sobre brasas. Afinal de contas, era preciso ser muito mongo para trocar um nascer do sol, a três milhas de Tavira, num barco repleto de pescadores que me fazem sentir como se fizesse parte da sua família, por corredores bafientos e repletos de víboras em São Bento.
E para que não se diga que só elogio a bandeira rosa, fica aqui um fortíssimo aplauso para Rui Rio que, no dia 18 de março, quando todos os deputados opinavam sobre o início do Estado de Emergência, proferiu palavras que ouvi no rádio do carro e me deixaram com pele de galinha:
“Para mim, neste combate, este não é um governo do partido adversário. É um governo de Portugal, que todos temos de ajudar neste momento. No combate a esta calamidade, o [partido] não é oposição. É colaboração.”
Se pudesse ter-me levantado, no carro, para celebrar esta intervenção com uma ovação de pé, tê-lo-ia feito sem hesitar. Mas temo que as buzinadelas insistentes do taxista atrás de mim, no semáforo, me acordaram do nirvana onde me encontrava.
Podia – porventura devia – terminar este artigo com estas palavras inspiradoras, mas parece-me que um bom momento de patriotismo merece ser alavancado por bons números lusitanos, que demonstram como esta massa de gente doida, às vezes até consegue ter juízo.
Comecemos com o gráfico dos dados nacionais, elaborado a partir dos Relatórios de Situação emitidos diariamente pela Direcção-Geral de Saúde. No dia 29 de abril o mesmo revelou números francamente fascinantes! A linha dos casos confirmados (cinzenta: 24.505) sofreu um abrandamento no ritmo de subida muito notório! Aliás, repare-se na distância que já tem da linha de casos confirmados estimados a partir da média móvel semanal da taxa de aumento diário (azul tracejada: 26.611). A diferença entre as duas (-5%) é A maior desde o início da série de dados!
A percentagem de aumento diário dos casos confirmados (0,8%) foi também a segunda mais baixa de sempre e a percentagem de aumento diário dos casos activos (0,4%, linha laranja: 22.062) foi A mais baixa de sempre. Aliás, com 0,4% de aumento em relação ao dia anterior, a linha laranja está praticamente horizontal!
E recordemos que estes dados são de uma quarta-feira e tivemos um número de testes razoavelmente normal (4.590), por isso encorajo todos a não atribuir estes excelentes números ao factor “fim de semana” e/ou “número de testes reduzido”.
O número de internamentos (linha amarela: 980) sofreu uma ligeira subida depois de duas semanas de descida consistente, mas o número de internamentos em UCI (linha verde: 169) não pára de descer (eram 270 no dia 7 de abril).
O número de casos recuperados (linha azul: 1470) deu mais um belo salto (no dia anterior eram 1389) e a média móvel semanal do número de novos casos confirmados diários (linha vermelha: 420) também não pára de descer.
Terminemos esta prosa furiosamente patriótica com um gráfico que encapsula perfeitamente as ganas com que Portugal se atirou a esta crise. Refiro-me à variação da média móvel semanal da taxa de variação diária em função do número de testes por milhão de habitantes, em que o nosso país lidera destacadíssimo o universo de países analisados, com 37.223 testes por milhão e uma taxa de aumento diário que tem vindo a diminuir consistentemente, fixando-se a média móvel de dia 29 de abril em 1,9%. Já faltou mais para chegarmos aos maravilhosos 0,5% dos amigos austríacos.
Terminemos com uma exultação um pouco tétrica ao orgulho nacional enquanto olhamos para a taxa de mortalidade covidiana por milhão de habitantes, onde a Bélgica, Espanha e Itália lideram, seguidas de França, Reino Unido, Holanda, Suécia, Suíça e Estados Unidos, ocupando Portugal uma posição francamente inferior, junto de países genericamente encarados como “bons modelos”, tais como a Dinamarca, Alemanha e Áustria. Pois claro que não nos queremos vangloriar à conta do infortúnio dos outros, mas sabe sempre bem constatar que, afinal, não estamos assim tão mal.
Em suma, só mesmo com muita má vontade é que se consegue interpretar estes números de forma negativa! Digo eu, que não sou profissional de saúde nem estatística, mas um mero biólogo marinho que gosta de números, matemática e modelos.
Só me resta apelar ao civismo de todos nos tempos de reabertura que se avizinham. As coisas não têm sido perfeitas, mas também não têm sido o cenário kafkiano apregoado por muitos. Tenhamos juízo e, parafraseando Rui Rio: “coragem, nervos de aço e muita sorte.” Porque a sorte de um, é a sorte de todos.
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